terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Natal na guerra




Noite alta. Na Cantina do Freitas, em Moçambique, jogava-se com vício e paixão. No fim de cada partida havia sempre grande alarido. Os vencedores, ávidos, conferiam os ganhos, metiam as moedas, as notas, nos bolsos do camuflado. Os azarados lamentavam as perdas com pragas, blasfémias. Para quem perdia, havia, de certeza, marosca nos lances. Suspeita misturada com o cheiro a tabaco, liamba, cerveja, suor. Por vezes, estalavam ferozes zaragatas.

Eu também fui depenado. Levantei-me furioso da mesa de jogo. Envenenado pela sensação de ter perdido com batota, rosnei insultos, soltei palavrões. Mas já outro tomava o meu lugar na mesa da lerpa.

Esse minúsculo reduto militar, onde antes funcionara a cantina do Freitas, ficava entre o Malawi e a Zâmbia, na província de Tete. Ali, os serões da tropa eram iguais. Sempre iguais. Nessa noite, consoada de 1969, não houve trégua. A estúrdia e os excessos até subiram de tom.

Agastado, a ruminar desforras, procurei consolo na minha viola. Essa vítima dos meus maus blues acompanhava-me para todo o lado. Dessa vez, nem a viola me valeu. E saí.

A caminhar ao longo do arame farpado, sentia-me outro. Levantei os olhos para o céu. Pensei no Natal. E tentei descobrir o tal astro mágico que guiou os reis magos até Belém. Ébrio de estrelas, perdi-me naquela refulgente aletria cósmica, esqueci a batota, as minas, as emboscadas. A picada. E, no entanto, esse palco de tragédias estava ali, à vista.

Subitamente um vagido encheu de sentido a noite. A poucos metros, numa palhota para lá da cerca de arame farpado, nascia um menino. Um menino negro, entre palhas
.

Jaime Froufe Andrade

sábado, 28 de dezembro de 2013

[Uma pedra incendiada]

*
A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas.
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas.
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água



Daniel Faria

Explicação das Árvores e de Outros Animais
ed. Fundação Manuel Leão, Porto, 1998

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

TRAIGO LA CAMISA ROJA



*

Na minha juventude, conheci um rapaz que apanhava cobras à mão. De todos os rapazes, era o único a ousar esse gesto. Prendia-as entre o polegar e o indicador, um pouco abaixo da cabeça: as cobras perdiam a defesa, ondulavam o corpo e aquietavam. Quando estive na prisão, pensei muitas vezes no rapaz, na sua arte de surpreender. Ao contrário de quem age tomado pelo medo, ali havia intenção pacífica. Cobras da água, as outras, excepto as víboras, o rapaz também atenazava nos dedos. No mês de Agosto. Descia lentamente a mão na correnteza suave, no fiozinho sussurrante entre os seixos, e de um golpe só detinha a cobra. Dir-me-á: a cobra não pressentia o rapaz, pés mergulhados na água, a sua sombra, a mão cindindo a limpidez? O predador, é esta a minha explicação, no acto da caça esquece os rumores, transmuta-se. Em frente dos olhos da cobra havia um cardume, toda a atenção se concentrava nos pequeninos e irrequietos peixes. Vi o rapaz, certa vez, agarrar uma a cobra que saiu da água com um peixe atravessado na boca. O rapaz livrou o peixe, voltou a pôr a cobra na correnteza breve; e ela, despojada da presa, volveria à mesma posição, imóvel como uma pedra, até o descuido de outro peixe se abeirar do perigo. Por que lhe conto isto? Devolvia os peixes à água, vivos, esse rapaz sem o preconceito do medo. Muitos anos depois, encontro-o homem feito. Pergunto-lhe se ainda apanhava cobras à sua maneira. E ele deveras se assustou perante a lembrança dos seus devaneios juvenis.




Imagem extraordinária. Volto a Lisboa, neste meu estado de agora eterno clandestino. Numa das ruas na zona do Chiado encontro um mendigo, de cócoras, no passeio. Outros vi, ténue a fronteira entre a penúria e a sobrevivência, a memória do mundo regressa à incerteza medieva. O acocorado, como guerrilheiro na mata, renega a linguagem dos homens. Ladra. Sobre o passeio tem uma espécie de piano, brinquedo de criança adaptado à circunstância, passa os dedos nas teclas, escorre uma música distorcida, nem chega a levantar voo. Nessa cama de ruídos desarmoniosos o homem despeja: “ão ão, ão ão, ão ão…”. Ladrar de mastim preso a estaca, esquecido ao sol, rouco de clamar por água. Na Idade Moderna vários artesãos se dedicaram à escrita de autobiografias. Pela palavra grafada aspiravam iludir a insignificância e, por esse modo improvável, ascender na hierarquia social, repelindo a revolucionária, talvez irrepetível, coragem proletária da futura Comuna de Paris. Por esses textos íntimos, seja o do artesão de Barcelona, de Londres ou de Antuérpia, cintilam abundantes referências à cultura clássica. O sonho de Ícaro, quase sempre, paira sobre as palavras quotidianas. Os artesãos queriam libertar-se do silêncio gregário sem correr o risco de queimarem as asas. Veja o equívoco histórico! Eles almejavam ser a vanguarda (talvez não ousassem tanto…) sem cravarem uma baioneta num aguazil, sem incendiar uma igreja ou assassinar um rei. O indigente de Lisboa, por certo, desconhece Ícaro. Homem de cócoras não sonha – desaprova a humanidade.



Por que motivo não vislumbra coragem revolucionária nos artífices do século dezasseis. Os relatos de suas vidas, se repararmos bem, sopram um sentido histórico: quem antevê esse sentido no quotidiano arroteia o terreno maninho que há-de levar à “sociedade avançada”. Sobre outro assunto, todavia, hoje gostaria de escrever. Perturba o homem, da sua última carta, acocorado. A desumanizar-se. A cobra muda de pele, mantém a identidade. O seu homem de Lisboa, ladrando rouco para o chão, está certo ou errado na atitude que tomou? Ele, perdigueiro encharcado, sacode a humanidade para a transfigurar. Como fruto maduro caído na terra: apodrece e se ilumina no húmus do devir. Sabe, eu gosto de conversar com os choupos de folha branca. Das árvores minhas conhecidas, tenha-o como a mais comunicativa. Sozinha, isolada, acabrunha-se na melancolia. “Triste como um choupo”, dizem na sua terra. Em bando, os choupos guardam o sonho de Ícaro, um pouco de vento e logo irrompe a festa. Desde menina, quando passo por uma manada de choupos de folha branca: paro. Fico ouvindo sua fala. Inaudito pressentimento, as palavras dos choupos brotam de seiva livre. Falo-lhes, eles riem – sempre fruíram essa indelicadeza – , riem como se desentendessem a língua. Na minha passagem pela prisão, nos momentos de maior desalento, desejava um choupo por companhia: para desentristecer a amargura. Permita-me o conselho, desentristecer será a difícil luta do futuro, que é o nosso tempo. A quem não fala com eles seria absurdo ouvir alguém a pedir um choupo, pedia livros. Afinal de contas, os livros memória tangível das florestas voadoras são. Certa vez chegou-me um de Georg Trakl, autor que conhecia pela rama, e bastariam três versos para me tornar forte e firme como a araucária, que lhe falarei noutro momento: Baixinho vem aí a noite branca,// Transforma em sonhos purpúreos dor e martírio/Da vida pedregosa. A poesia, no seu mecanismo secreto, move o mundo – me avisavam os choupos de folha branca, fiz de conta que não entendi.



Desentristecer o outro será poética forma de luta, todavia inútil. Um combate perdido. O homem-cão, acuado, guerrilheiro que perdeu a mata, está feliz ou infeliz? Nem uma coisa nem a outra. Essa fronteira, essa paleta de sentimentos não existe mais numa franja vastíssima da humanidade. Hoje andei por Vila do Conde. No tempo da clandestinidade de homem vivo encontrei nesta terra pontos de apoio seguros. Amizades profundas. Observo três velhos sentados à sombra das tílias, frente ao recinto da feira. Dois olham e sorriem da tarefa do outro velho: espalha, delicado, milho-miúdo junto dos pés e, por esse gesto, como pescador à linha engodando bogas, junta significativo cardume de pombas. Não excessivamente famintas, disputam o alimento sem a voracidade, por exemplo, das pombas de Lisboa. Dar de comer às pombas, e voltamos à palavra revolucionária, desentristece os dias iguais. O gesto generoso abria o sorriso dos velhos. As pombas fervilham rente aos pés do homem, do semeador, e esse mesmo homem chama-as pelo nome. Ou, pelo menos, alguém no bando tem nome. “Luís, anda cá, Luís!” Uma das aves responde ao apelo, fura o burburinho, asas levantadas como naus em mar sereno, e há-de vir comer à mão do velho. Desinteresso-me desse final. Olho as tílias, na sua grandeza, por causa dos seus choupos. Que línguas falam as tílias numa tarde quente de Julho? Estive para perguntar aos velhos, algum saberia dizer-me algo, uma patranha qualquer, que os velhos quando desconhecem coisas metafísicas, não se embrulham no silêncio prudente, inventam como um menino a descobrir o mundo. Ainda olhei um deles, seria deselegante de minha parte alarmar o convívio. Eles ficariam assustados, as pombas levantariam em alvoroço. A memória encharca de medos os velhos. Eu também fui velho, mais velho do que os camaradas das pombas. Fui velho e a memória, por centos lances traiçoeiros, quis turvar a água limpa. No essencial, creio, mantive a luminosidade. Velho, fui muito velho e não envelheci.





Vagueei pela rua do homem que ladrava. Não o vi. Talvez tenha concluído a metamorfose e se fez à mata, ou terá viandado com o seu humilde viático para o nosso lado. E deste lado somos inomináveis, voz inaudível de choupo, descarecemos de registo. Lisboa. Cidade bonita, pena foi não achar os jacarandás floridos. Julho aproxima-se do fim. O Pessoa, no Chiado, pareceu-me, a um primeiro olhar, guardador de rebanhos transido, sitiado por cruzados da era do digital. Impaciente. Posar ao lado de desconhecidos cansa. De madrugada, quando a cidade enfim se apazigua em algum silêncio, regresso ao local. Imagino o homem-cão, na cadeira acoplada à estátua, a retomar a fala. Abre uma excepção, como quem deixa de fumar e acende um cigarro para sentir a inutilidade do gesto, do acto, se certifica do poder sobre o vício. O homem-cão, na linguagem dos homens, murmura: “Tu me conheces bem, da mesma família somos. Que nos falta se nada temos?” Pessoa responde, no indizível idioma de estátua: “Ó meu irmão triste, que proveito procuras tu num homem cheio de mágoa?” Devagar a cidade acorda, o homem recolhe a um beco qualquer a exalar a urina (está visto, cerveja muita não é a melhor bebida para a sede da mágoa). Houve um momento, sobre a manhã, que toda a cidade parecia habitada por gatos, por animais que andarilham na noite a delimitar território. Quando estive na prisão, nas cartas que escrevia, reinventava a rebeldia, entusiasmava a companheira de Karl, também ele preso político, a transformar em sonhos purpúreos dor e martírio. Mas era para mim mesma que eu falava. Agora, liberta de tudo, por que motivo declino na mágoa. Cesse, por momentos, cesse essa rigidez, camarada Duarte. Dê alguma atenção à minha presciência: desentristecer será, pois, o rumo da nossa luta. Não volto a Lisboa. De regresso, havia de passar por Sintra. No bosque do palácio de Monserrate, abracei árvores assombrosas, a tal araucária, camélias… Vi uma paciente árvore-da-borracha a engolir a parede da capela em ruína. Poderosa imagem: lembra jiboia a sorver elefante. Ouvi de alguém: o palácio e vasto jardim pertenceram a Francis Cook, milionário, fortuna granjeada no comércio de têxteis, que ostentaria o título de primeiro visconde de Monserrate. Não vislumbro, por esses lados, choupo de folha branca: ele me explicaria por que razão certos homens desprezam a pobre gente e, com esmero, cuidam das árvores.


Luz, suave luz penetra na nitidez das coisas. Um terreno baldio, alguns pinheiros ao redor. O estrado ao fundo, anfiteatro de improviso. Povo de S. Pedro da Cova, arrabalde de arrabalde nas fímbrias do Porto. Para me ouvir a palavra, nessa tarde de domingo estival, havia pequena multidão digna. Permita-me que reforce a ideia: uma pequena multidão digna. Dos camaradas presentes parte se compunha de antigos mineiros, esquivos da garra fascista, venceram a fome e a silicose. As minas de S. Pedro da Cova tinham encerrado há muito, eles ficaram, acalentados no orgulho de suas heroicas rebeldias. Esses homens e mulheres, a pobre gente de toda a parte, me fizeram outra pessoa. No comício, na suave luz que parecia perder a impureza ao atravessar o verde pinho, pela primeira vez, na longínqua vida, não me senti filho adoptivo. Descia à lhaneza das coisas, sempre fora esse meu desejo, e fui mineiro no uso da palavra livre, auditório bebendo meus gestos. A emoção abeira-se (um coro canta desde o fundo da memória Traigo da camisa roja/ de sangre de um campañero…). Eu sabia, a emoção, troca-me as palavras, é sincera como silêncio de pedra, indomável cavalo de fogo. E de súbito, Rosa, irrompo a falar de felicidade. Da felicidade. Se eu estivesse no lugar de um dos muitos jornalistas, acomodados à sombra dos pinheiros, teria dado este título ao meu último (seu o revelar a ninguém) comício: “Um velho feliz fala da felicidade”. A felicidade, fruto único de quem luta; essa felicidade que os antigos mineiros sabiam por amarga experiência feita: dor e sofrimento vertidos em sonhos purpúreos. Terminado o discurso ao povo de S. Pedro da Cova, caminho pela multidão, os mineiros abraçam verdadeiramente felizes o camarada igual por dentro e por fora… O seria eu que os abraçava na casta leveza da luz? Logo que possa, irei Sintra. Perdoe-me a dúvida: se a árvore-da-borracha, quero ver, abocanha ruínas de capela.



PS.: Reencontrei o homem-cão, no mesmo sítio, na mesma postura. Desta vez tocava realejo.



sábado, 30 de novembro de 2013

Lembrança de maio

*

Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
- A santa sobre os abismos -
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.

Adélia Prado

Terra de Santa Cruz, ed. Nova Fronteira, 1981

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Aos vindouros


*
aprendam a ler nas entrelinhas,
nos punhos ígneos e fechados,
na corda, na pedra que nos naufraga
          e no amor sonâmbulo
          e nesta flutuação amarga
de cavalos-marinhos prisioneiros.


                         E julguem,
depois  julguem-nos com dureza.


António Osório

A Raiz Afectuosa, ed. de autor, Abril de 1972

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Diversos són els homes i diverses les parles

*
Diversos são os homens e diversas as falas,
e acordaram muitos nomes para um só amor.

A velha e frágil prata torna-se tarde
parada na claridade sobre os campos.
A terra, com armadilhas de mil finas orelhas,
cativou os pássaros das canções do ar.

Sim, compreende-a e fá-la tua, também,
desde as oliveiras,
a alta e simples verdade da voz prisioneira do vento:
"Diversas são as falas e diversos os homens,
e acordarão muitos nomes para um só amor."

Salvador Espriu
trad. Manuel de Seabra
A Pele de Touro, Publicações Dom Quixote, 1975

domingo, 24 de novembro de 2013

domingo no corpo

*

as tardes de domingo, começam
sair de casa, como se fora para longe...
e voltar a ela, sem vontade de fazer nada.

tenho o domingo no corpo

minha mãe prepara a feijoada com solas para o almoço

meu pai dorme na tarde para a semana inteira
e ressona alto

as vacas e seu cheiro entranham-se-me
minha mãe tira leite, mais cedo que o habitual

e adormeço num silêncio quente

gosto de não existir neste tempo

meu pai, abeira-se de minha mãe. todos quietos.

eu não entendo nada.

talvez, por isso, pereça
a poesia

Aurelino Costa

Domingo no Corpo, Deriva Editores

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Lenha verde

*
a mãe desaprendeu a fala.
a mãe cativa, só o verde
dos olhos me aperta
e murmura como se eu fosse
ainda um rapazinho
desavindo com o sono.


digo, mãe
mãe, vou cortar lenha verde
zangarinho e alecrim
na mata das dornadinhas
faremos uma fogueira pelo s. joão.


O Primeiro Dia
pequena antologia da mãe na poesia portuguesa
escolhida por José da Cruz Santos
ed. Modo de Ler

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Encontro


Da árvore vergada
chamei
pelo nome o peixe irado.
Tracei à volta da lua branca
uma figura, alada.
Veio-me o sonho do caçador
que sonha cobrir a presa.

Castelos de nuvens sobre o rio,
é a minha voz,
luz de neve sobre as florestas,
é o meu cabelo.
Pelo céu sombrio
cheguei,
erva na boca, a minha sombra,
encostada à cerca de madeira, disse:
Leva-me de volta.

Johannes Bobrowski

Como um respirar, ed. Cotovia
Trad. João Barrento

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Não sei nada




         Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar,
diria que sou um domador de  palavras. Mas só eu – eu e os
meus irmãos – sei em que medida sou eu que sou domado
 por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem
o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho deter-
minado antes da grande aventura.
        Sim. Conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio.
O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar,
rolar umas sobre as outras as palavras. As palavras são seixos
que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o
contrário dos pássaros, embora “pássaro” seja uma das pala-
vras. A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida
não  interessa. Alguém que me procure tem de começar – e de
se ficar – pelas palavras.  Através das várias relações de vizi-
nhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a
saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.

Ruy  Belo

Obra Poética, volume 1
Editorial Presença, 1981

terça-feira, 5 de novembro de 2013

As chuvas

os estorninhos outra vez
em bando pelo meio da névoa
que penúria tão funda os arrasta
como o povo do nosso tempo?

povo, povo onde deixaste o fogo libertário?

os estorninhos, dizia
e os choupos do caminho
perdem o frenesim das folhas
tristes quedam no afago da chuva

sábado, 2 de novembro de 2013

árvore





apaga o rasto das palavras

ensina o silêncio a ser árvore
da primavera audaz cheia de devir.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Cântico e eucalipto



És o pequeno estame
sobre a morte     o  abismo
em luz coagulada
pesando em meu canto


Ah     como vens navegável
em meu peito (da ausência
ao claro rio) da alada presença
à haste vigilante

se amar-te é possuir-te
em aquedutos de alva

se banhar-te os seios
é nimbar-te em seiva
                      de eucalipto.


Aureliano Lima
Cântico e Eucalipto, Brasília Editora, 1979

domingo, 27 de outubro de 2013

Una Ventana al Egeo



Me asomo a la ventana
que dejó entreabierta el poema.
Es triste mirar hacia atrás
y sentir sobre los hombros
ele peso de lo irrepetible.
No volveré a cumplir treinta
em la isla griega de roca desnuda,
ni volveré a taratear nunca en domingo
aquella tarde de abril
en la que me cegaba
la rara avis de la luz egea.
La ventana terminará por clausurarse
y los dias inolvidables de mi vida
quedarán como siempre
del lado que me execluye.

Lauren Mendinueta

in revista delphica
letras & artes, número um, 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

26 de outubro


temos de voltar à rua
arremessar palavras
aos mercadores da tirania

Moda da Menina Trombuda


É a moda
da menina muda
da menina trombuda
que muda de modos
e dá medo.

(A menina mimada!)

É a moda
da menina muda
de modos
e já não é trombuda.

(A menina amada!)


Cecília Meireles

Obra Poética, José Aguilar Editôra, Rio de Janeiro, 1967

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Virá a morte e terá os teus olhos



Tu não sabes as colinas
onde se derramou o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós largámos
a arma e o nome. Uma mulher
olhava para nós quando fugíamos.
De nós só um
parou de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
Agora é um trapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera-nos nas colinas.

Cesare Pavese
trad. Carlos Leite
Trabalhar Cansa, Ed. Cotovia, 1997

Três fragmentos de Safo

1

Que sobre os que me condenam desabem
os ventos e as inquietações.


2

Penso que jamais, em tempo algum,
verá a luz do sol uma rapariga
que pelo saber se te possa comparar.

3

Mas tu, se és meu amigo, escolhe
uma companheira mais jovem, pois eu,
que sou mais velha, não aceitaria
viver contigo.


Poesia Clássica Traduzida
Albano Martins

delphica
letras & artes, número um, 2013

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Subúrbio



A custo de pé se mantêm os muros
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos,  os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das
                                                             janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.

Guillevic

Trad. David Mourão-Ferreira
Editoe«ra Ulisseia, 1965

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

[A voz emboscada]

Não há um amigo
perto. Outros pés
não há que tragam
o ir e o vir
de um milhar de ruas

Há uma boca
industrial e devora
a raiva toda
dos lugares.

Há a voz emboscada
nos livros por ler
os pulsos que não
nos levam já
a qualquer carta
pelo menos hoje
pelo menos carta.

Há as mães acordadas
e emigram connosco
noite após noite
para o dia seguinte

e a cicatriz que cose
pela face alguns
remendos doutras
companhias.

Victor Matos e Sá

Companhia Violenta, ed. Centelha, 1980

[Ni una palabra]


Ni una palabra


brotará en mis labios

que no sea

verdad.

Ni una sílaba

que no sea

necesaria.

Viví

para ver

el árbol

de las palabras, di

testimonio

del hombre, hoja a hoja.

Quemé las naves

del viento.

Destruí

los sueños, planté

palabras

vivas.

Ni una sola

sometí: desenterré

silencio, a pleno sol.

Mis días

están contados,

uno,

dos,

cuatro

libros borraron el olvido,

y paro de contar.

Oh campo,

oh monte, oh río

Darro, borradme

vivo.

Alzad,

cimas azules de mi patria,

la voz.

Hoy no tengo una almena

que puede decir que es mía.

Oh aire,

oh mar perdidos.

Romped

contra mi verso, resonad

libres.



Blas de Otero



domingo, 20 de outubro de 2013

Linho



eu sou o outro


trago palavras das lonjuras

sabem a frutos silvestres

algumas perderam o sentido

ficaram cegas

como casas abandonadas



eu sou o outro

o que procura o burel antigo

gestos perdidos

na ténue luz da tarde

o fogo doce dos lábios a lavrar no linho



eu sou o outro

o que sempre perde

e volta ao princípio.





sábado, 19 de outubro de 2013

Os sinais

XV


Em tão pouco em tão nada afinal acredito
Só me empolga o rigor com que o digo e não digo


David Mourão-Ferreira

Obra Poética, 2º volume

Os sinais

X

As pegadas do Sol nem sempre a Lua
lentamente as desfaz quando se oculta



David Mourão-Ferreira

Obra Poética, 2º volume

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Um Barco para Ítaca

ULISSES


E havia laranjas. Havia um país de leite
e de limão.

Havia cântaros carregados de azeite.

Pedras e cabras.

Raparigas.

Ai as ruas estreitas. E o sol. As sombras. Havia
                                                      uma canção

que falava do vento e das espigas.

E agora só palavras. Só palavras.

Minha nação já só de cardos e caruma.

Ausências. Fantasmas.


(...)

CORO

As palavras estão gastas e este tempo é de agir.

Precisamos dum barco. Um barco para partir

um barco para chegar. Um barco para encontrar

Ulisses perdido no mar.

Manuel Alegre

Um Barco para Ítaca, ed. Centelha, 1971

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um jeito

Em silêncio
te vestiste
em silêncio uma vez mais
ternamente mentiste


Em silêncio
fechaste o portão
em silêncio a-
jeitaste o coração.

Ulla Haln
versão de João Barrento

A Sede Entre os Limites

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Fogo

o fogo outonal nas árvores

prova que a beleza da natureza
se estende até à morte.

  uma morte transitória.

sábado, 12 de outubro de 2013

Da vida dos anjos


anjo da guarda
ou anjo que aguarda

qual deles é o imperfeito?

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Para Wang Lun

Li Bai entra no barco, vai partir,
        de súbito ouvem-se passos e canções, na margem.
Tão profundas as águas do lago do Pessegueiro em Flor!
       Não tão profundas como o amor de Wang Lun.




Li Bai

Poemas de Li Bai
trad. António Graça de Abreu

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A menina de Wu

O vinho corre
        em taças de ouro.
Chega a menina de Wu,
        quinze anos montando um cavalo fogoso.
Tem sobrancelhas pintadas de negro,
        as botas de cetim vermelho.
Ainda tropeça nas palavras,
         mas canta como um rouxinol.
No calor da festa
         aconchega-se em meus braços.
Que faremos ambos
        por detrás das cortinas da cor do hibisco?


Li  Bai

Poemas de Li Bai
Tradução de António Graça de Abreu
Instituto Cultural de Macau, 1996

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Fujo da memória


Oiço os teus conselhos
se piso o chão descalço
(era adolescente)

Oiço pedir água
troco

E o teu ventre
pulido
de novo me arrepia


António Reis

Poemas Quotidianos, ed. Portugália, 1966

sábado, 5 de outubro de 2013

A caça

a caça. abriu a caça
os cães pela madrugada dentro sôfregos,
cheios de doçura e morte.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A pequena morte

Tão perturbado amor
este, o que escorre
como a goma das árvores,
este que feito cão
uiva e cintila.

O amor com suas facas, suas cordas,
o seu lenço cigana -
- abrindo as frestas,
dividindo a pele.

Eis a mulher. Deitada sobre os sons
na volúpia da espera:
a pão e água.
Desejando o amor, o risco exangue,
a exposição das coxas,
o temível sabor do homem.

Esperando:
como um ser punido e olhado,
entre cetins desfeitos,
a ferida.

A vagarosa morte,
esse prazer.

Hélia Correia
in A pequena morte

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Invocação

Oh! desgraçada Hispania
de belo nome, rosa
de minúsculas pátrias!

Como podemos ainda
tolerar que os bárbaros
sujem o teu nome?

Francesc Vallverdú
in Poetas Catalães de Hoje

domingo, 28 de julho de 2013

[Não posso adiar o amor para outro século]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a  minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa

A Palavra e o Lugar, Publicações Dom Quixote, 1977

ODE Á BELEZA DA PALABRA


SÓ a palabra vale. Unicamente
ela ilumina o mundo,
dalle claridade ás cousas
e fai nídia e intelixíbel
a confusa escuridade do noso
ser, mortal e indeciso.
Tudo muda. Somente a palabra
permanece, na súa infinitude,
se leva dentro de si a chama
que um día queimou, con
lúcida paixón e con verdade,
a desolada flor da nosa vida.

Manuel María

in As lúcidas lúas de Outono

segunda-feira, 24 de junho de 2013

[Nas cidades do sul]


Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.


Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua.

Luiza Neto Jorge

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Exausto

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


Adélia Prado

Bagagem, ed. Guanabara

sábado, 25 de maio de 2013

Página oficial

tenho tantos amigos no facebook
estou tão sozinho.

domingo, 19 de maio de 2013

Os frutos de maio


Por não saber alcançar os ramos mais altos abraçado ao tronco, como faziam os meus amigos de infância, destros e corajosos, trouxe as árvores a pastar na escrita. Desamarradas da terra, as árvores voam. Chegam depois as aves, a cabra, os meus gatos e outros bichos. De repente, deparo: o tempo, as marcas do tempo: abro o portão de uma remota brévia, procuro repouso, água fresca, palavras como perdigueiros cheios de melancolia. Uma sebe de muitos anos separa o poema distante do mais recente. Pouco importa. Nasci, para que conste, numa aldeia cingida por serranias. Um dos montes tem este nome: Marouço. Os fabulosos pastores de tempos antigos, quando o mundo era movido a tracção animal, diziam ouvir do cume dessa serra, a muitas léguas de lonjura, os murmúrios do mar.



A Fome Apátrida das Aves, pref. Manuel Gusmão, ed. Modo de Ler, maio 2013




sábado, 18 de maio de 2013

Verossímil

Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
"Canta alto, espevita as palavras bem."
Eu levantava vôo rua acima.



Adélia Prado

Bagagem, Ed. Guanabara

segunda-feira, 22 de abril de 2013

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR


Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou sentimento.



Adélia Prado

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Poemas imperfeitos



Janela


certas noites por aí
convido a lua
tomamos chá de cidreira
trocamos versos antigos.




Lobo

o solidário: conta
histórias felizes
aos cordeirinhos.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Oración Derradeira


Señor:

Non che pido que camiñes
sobre as augas.
               Véñome sentar á túa beira.
As miñas armas
               aí están sobor da area.

               Deixar que o mar
               as vele...
Estou canso!
Pidoche
                que as douradas portas
da lonxanías, as peches.
De alí viñan os meus versos.
Ise páxaro brilhante
fatigou a miña frente.
Que sólo unha sombra
seña sobre o mar
Estou canso!
Que os lirios
               do sono
caian riba das miñas pálpebras.
Non me fagas ningunha pregunta:
faríasme
                volver a empezar.
Coma cando o viático
por unha rúa pasa,
eu quero ise silencio agora,
ise solitario silencio
que se levaron  do Sagrario
e que uns instantes
                queda pechado e baleiro.
O mar está quedo,
e na area
as miñas modestas armas
vanse sumindo.
Non quero soñar
coas miñas lonxanías misteriosas.
Alonxa ise páxaro brillante.
Que frescura sinte a miña frente
                apoiado no teu manto!
                Señor, Señor
                pecha o meu libro pra sempre!

Luis Pimentel
Sombra do Aire na Herba 

terça-feira, 26 de março de 2013

A barca dos dias

um dia cheio de chuva

sobe lentamente a barca

na sereníssima água do tempo

talvez a juventude seja sonho incompleto

a bicicleta e o ramo dos lírios

as paixões escondidas no bolso

tão longe, tudo fica tão longe



para onde me leva a barca, eu sei.





vinte e seis de março de dois mil e treze

sexta-feira, 22 de março de 2013

SEGUNDA PESSOA

Alguém diz tu. Alguém sem nome.
É a terra e o corpo e é o rasto de um sentido.
Alguém diz tu à imagem que se esgarça,
à certeza de uma longínqua razão.
Longe. O passado. Nomes, errados nomes de desejo.
Cego de insónia, nem lembrar te posso.
Nem mesmo em sonho saberia ver-te.
És só o pronome, tu, a ondular-me na boca,
norte magnético num desespero em surdina.
És a sílaba que dói a dor solar de um sentido.
A história avança na cabra-cega sem rostos,
e eu vivo em ti o tu mais só da minha vida.


Óscar Lopes

O leitor emocionado partiu hoje. Nas noites de insónia escrevia poemas, mas só o que aqui transcrevo, 'Segunda pessoa', foi publicado, há mais de três décadas, na "Ilha dos Amores", edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Linguista, historiador da literatura, ensaísta, leitor, leitor apaixonado, Óscar Lopes deu a vida toda à "pobre gente, toda gente": a avó chorou de desgosto quando soube que ele era comunista. "E eu", contou um dia, "chorei, porque ela chorou".

sábado, 2 de março de 2013

Utopia realizável

é na rua que tudo começa.


hoje foi lindo: hoje voltei

a ter orgulho de ser português.

hoje vi gente com uma cábula

a cantar a grândola

gente jovem a descobrir abril



na rua tudo começa

na rua a palavra se faz substância de utopia realizável.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Para pedir paciência nas adversidades

     Nada te inquiete,
nada te assuste;
pois tudo passa,
Deus nunca muda.
A paciência
alcança tudo.
Quem Deus possui
nada lhe falta.
Só Deus nos basta

Teresa de Ávila

in Seta de Fogo