domingo, 30 de dezembro de 2007

Retábulo

Cidade emparedada. Como se dentro da casa houvesse donzela, estendida no chão, a perscrutar, pelo ressoar dos cascos, a distância das tropas napoleónicas. Eis o pavor antigo de profanação da honra sorvido agora pelo (securitário) abandono. A cidade, foz onde definha o despovoamento de mil aldeias, emigra também na barca da morte. Enigmáticos retábulos imperfeitos, tudo o que resta.


(foto de Augusto Baptista)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

O cavalo, outra vez

Nunca vi nenhum cavalo ruminar a palavra prado

*

É tão triste escrever sol

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Os teus olhos

A montanha desceu
ao povoado

(nos teus olhos
não há neve, não há lobos)

domingo, 16 de dezembro de 2007

O jardineiro das virtudes

Longe da vista dos criados, misturou areia fina e estrume de burro no húmus. Mezinha capaz de enxugar a acidez do solo, nunca a memória da terra. Pela raiz, o arbusto não cedia a fabulosa bondade de florir no Inverno. A natureza, fundeada em duráveis silêncios, embargava a criativa profanidade. Apaixonado amanho, inútil o desenredo. Olha de novo a camélia, desapontado. Mestre jardineiro, que povoa de exotismo jardins e brévias da foz do Douro até à Galiza, abriga a mágoa: um criado do horto aproxima-se, avisa-o da chegada de Venâncio Euclides. Ao morgado irá vender dois pés de mirtilo na justa idade de plantio, na altura certa de oferecer as primeiras bagas, luzidias como pena de estorninho.

Quando a carqueja do Marouço sacudia o pobre agasalho de neve, Venâncio Euclides galopava, solitário, na direcção do mar. Nesse tempo, viagem de assinante ilustre além dos limites da comarca haveria de passar pelo jornal A Cabreira. “Foi à cidade do Porto, d’onde já regressou são e salvo, o nosso estimado e bom amigo Venâncio Euclides de Sales, morgado de Vila Boa da Roda”. Partia pouco antes da primeira luz, um atalho evitava a passagem pelo centro de Braga, na vila nova de Famalicão acharia pernoita. Afeiçoavam-se, pela tarde do dia seguinte, os cascos ao empedrado da cidade grande. Na Quinta das Virtudes, concedia folga e penso ao cavalo.

O horticultor e jardineiro multiplicador guia a visita, demorada. Mesmo em pleno Inverno, o viveiro desce florido quase até à margem do rio. Pára junto da camélia, não lhe afaga o brilho das folhas como é seu jeito, identifica-a sem o espanto feliz que associa às suas criações. Como se fosse mais uma camélia, por nomear ainda, da vasta colecção do Horto das Virtudes. Terá de atravessar Invernos, beber a sombras das manhãs, até exibir porte e ramos que permitam a multiplicação por alporque. Ao lado, o viçoso talhão de mirtilos alenta, por instantes, o mestre jardineiro. Ele sempre reparte a alegria quando fala da alma das árvores, dos enxertos de borbulha, ou das abóboras-de-turbante (para consumo próprio dos seus olhos) cultivadas no Peso da Régua, numa pequena quinta da mulher.

A baga de mirtilo, diz o mestre jardineiro, depura a vista.

O morgado de Vila Boa da Roda ocupava a vida na veação e, no defeso, plantava árvores invulgares no jardim e no bosque. Exige a caça perna ligeira, gesto rápido, pureza na vista. Nas encostas do Marouço, entre a Chã da Fonte e o Penedo Gaio, derribou, sem apelo nem agravo, açafates de perdigões. Havia caça, nessa época, e o acto cinegético com arma de fogo estava restrito a gente de linhagem. Venâncio Euclides e duas perdigueiras – por morte legavam o nome às cadelas seguintes – entravam no monte pela aurora, volviam no cair da tarde. E a noite tinham já por companhia quando acercavam a Vila Boa de Roda, cadelas prostradas de cansaço, o caçador aprumado, polainas polidas no mato molar. Farto cinturão. Outras tantas perdizes o criado trazia, desgasto como os cães de parar, no bornal. O tempo, inexorável, sempre deixa sinais por onde apascenta os seus rebanhos. Uma das últimas caçadas virou triste cortejo de tiros errados, e as perdizes a levantar rente ao focinho das cadelas marradas – nunca, mesmo nos primeiros manejos de caçadeira, tivera pontaria assim desafortunada.

Qual é mês da colheita dos mirtilos?

No declínio do estio, quando os dióspiros botam corpo.

Na abertura da época venatória, pensa o morgado, já a fome das aves debica os dióspiros. O mirtilo também se conserva seco, como o figo, sem esbanjar qualidades medicinais, diz o mestre jardineiro multiplicador, como se passeasse no pensamento de Venâncio Euclides. Na Inglaterra é fruto disputado pelos artífices de ourivesaria e pelas pobres artesãs da renda de bilros.

O morgado, convencido, pede instruções sobre a forma de cultivo.

Em terreno magro, protegido dos ventos da serra. Ao contrário das camélias, deve tocar o sol logo pela manhã: o mirtilo decanta a limpidez da luz.

Sem grande esforço, descativa da terra vegetal dois pés do arbusto, agasalha as raízes em musgo humedecido envolto em serapilheira.

Enquanto caminha, o morgado de Vila Boa da Roda fala das camélias do jardim e das que se acoitam no bosque sob a grandeza das outras árvores, das trasladadas do Porto e da secular Alba Plena, herança florida do avô paterno. O jardineiro multiplicador de espécies parece indiferente à palavra. E ele sempre se entusiasma a ouvir a longa história da Alba Plena, a mais bela de todas, como se esta antiga raça de camélia da China tivesse a sua marca – a pessoalíssima marca de José Marques Loureiro.

Que ruindade o morde?

Mestre jardineiro pára.

É o São João…

Retoma a passeata no imenso labirinto vegetal. O morgado fica parado, a arrebatar o espanto,

Ainda é Inverno, mestre Marques Loureiro!

Detém-se, o dono do Horto das Virtudes pára de novo. Impossível agachar por mais tempo a tormenta,

Venha comigo.

Os dois homens movem-se em silêncio, levantam aqui e além pássaros que a fome faz afoitos, atravessam talhões de figueiras, pereiras, macieiras, limoeiros, a estufa dos ananases, depois o sítio das árvores de fruto de caroço, as primeiras a mostrar flor na Primavera. Os talhões estão divididos por sebes de alecrim: casa de joaninhas que se alimentam de insectos nocivos à natureza. Emaranham-se, por fim, no vasto reino colorido das camélias. A viagem cessa rente ao alfobre de mirtilos. Mestre jardineiro apresenta a jovem camélia, apartada das outras. E entristece.

Apuro-lhe há anos o destino, senhor morgado. Todavia, os caprichos da natureza cobrem os sonhos. Mandei um homem ao Douro em busca de estrume de jerico de almocreve, misturei esse estrume com baga de sabugueiro, que o mesmo homem mercou na Granja do Tedo, e areia do mar de Moledo: mergulhei aí as raízes e poucas vezes as humedeci. Ofício inútil, senhor morgado. Podemos criar nova variedade de camélia, mas nunca, por alquimia alguma, alterar-lhe o remoto destino.

Não o entendo, mestre Loureiro. Vejo aqui uma camélia perfeita, com carácter… botões sadios, folha luzidia!

Falha um pormenor: não floresce em Junho, meu bom amigo. O sonho era esse: criar a Camélia São João, de imaculada brancura como a Alba Plena. A noite das ervas de cheiro merecia essa variedade, seria a mais genuína camélia do Porto.

No Minho também há São João. Traz o povo rama verde de pinheiro e, no largo, quando arriba a noite, faz a fogueira: na labareda purificadora junta depois ramos de alecrim.

José Marques Loureiro, o jardineiro das Virtudes, está triste. Nem a imagem aromática das chamas a roubar a noite lhe enfraquece o desgosto.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Bestiário para as crianças

Cegonha

A que me trouxe de longe
de muito, muito longe
chama-se Alcina.


Chimpanzé

O nosso irmão remoto
continua apaixonado
pelas árvores.


Carriça

Ave de biografia mínima.

domingo, 9 de dezembro de 2007

[A leve pureza das aves]

há um aroma triste

no íntimo das palavras

quando escrevo com os olhos.



nas palavras

inquiro a leve pureza das aves

e apenas invento

o rasto, o rosto da melancolia*.





* a melancolia é a forma mais luminosa da morte.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Casa


a minha casa fica dentro

do inverno

num inferno de palavras.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Em breve, o cavalo

o perfume amarelo
das giestas
debruçado na estrada

rápida a manhã
invadida pelo automóvel
que enxota as árvores


também a navalha
do enxertador
indicia a primavera

em breve
o cavalo soltará tenras
crinas verdes


a real romã
esvaída de frio
na árvore despojada

chegam os pássaros
e grão a grão
sorvem-lhe o sorriso

(publicado na revista Canal, nº 4, Outubro de 1998)

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Nenhuma infância, mesmo a dele


Ergue-se da manjedoura, entontecido pelo bafo a feno ruminado. Enfim, é a hora de andarilhar o seu caminho: nenhuma infância, mesmo a dele, terá tempo para ser eterna. Está frio, muito frio. Como poderá o menino sair assim, desagasalhado, do estábulo? A notícia corre ligeira. Vieram emissários de toda parte, uns de avião, outros de automóvel. Amáveis como o menino nunca vira ninguém, sorriso aberto, suaves gestos, palavras tépidas como o vinho. Todos quiseram ajudar. Tanta generosidade espanta, assusta o menino. E prometem-lhe roupa para a vida toda, vivesse ele a vida toda; leite, iogurtes, bolachas, Ben-u-ron, fraldas rigorosamente impermeáveis.

O que quereis em troca?

Nada. Quase nada, disseram.

Que apareças em público com roupa da nossa marca

a beber o nosso leite…

e se as febres te tolherem, diz que tomarás o nosso xarope.

Isso não farei. Quero vestir-me como os meninos do meu tempo; alimentar-me como os meninos do meu tempo, vencer a febre como

Impossível o teu desejo, alguém interrompe. O teu tempo perdeu-se, não existem meninos do teu tempo.

São homens?

Foram meninos, homens…

E depois?

Desapareceram, é a lei da vida.

O menino volta-se devagar, dirige-se à manjedoura. Acomoda-se na palha: adormece, sereno, embalado pelo bafo do tempo perdido.

À porta do estábulo, o desassossego agita a boa gente, agora indecisa a calcar estrume de dois milénios. Um deles, afoito, segreda algo ao ouvida da vaca.

Não!, reage o dócil animal.

Tu podias salvar humanidade da fome, da penúria!, implora o emissário afoito.

Sou muito velha para você me tratar por tu… Deixe-nos em paz!

Partiram. Uns de avião, outros de automóvel. Em redor do estábulo amontoam-se presentes. Roupas, fraldas impermeáveis, brinquedos de um tempo futuro. Dormirá mil anos, mil anos mais, o menino: emaranhado no sono, no sonho perpétuo de ser menino?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Pena de gaio, vermelha

Há uma maneira muito simples de pescar trutas. No hipermercado, seguir até à peixaria: sobre o gelo, o indefeso cardume. Trutas, reparará, do mesmo tamanho. Brilham como se tivessem escamas de prata. Salmonada, truta arco-íris, recusa as águas frias de rio de montanha. Truta de viveiro, cevada ao ritmo célere da nossa sociedade. Não é dessa espécie, em franca expansão, que gostaria de falar. Trutas, para mim, só as de pinta vermelha: e essas jamais encontrará em imóvel cardume. Para iludir uma dúzia de palmeiras (as trutas medem-se aos palmos), é preciso bater muito rio, desde o cantar do pisco até ao sol projectar a nossa sombra na água limpa: tempo de trégua, de pousar a cana até ao declínio do dia. Grande empresa pôr em prática a receita que atrás sugeri. Se não é do mister, mais difícil se afigura a tarefa. Explico: a mãe de todas as coisas, a experiência, se convoca também para se obter sucedimento na antiga arte de iludir o peixe belíssimo, arguto. Arredio. Um simples gesto, passo desmedido, e a truta, em busca aflita de refúgio, some-se da vista. Vamos com calma. Tirando uns infelizes meninos sobredotados, conhece alguém que tenha nascido ensinado? Pode parecer cometimento arrojado, mas a pesca à linha é por vezesfrágil ofício poético. Somos só nós e o silêncio predador por dentro de Maio, na verdura tenra e húmida da manhã. O rio, o rio limpo, por cúmplice companhia. Lança-se a amostra, nº1, “pena de gaio”, vermelha, sem assustar a água, rente à outra margem: e logo o carreto a faz girar, fulgir, corrupio de encantamento: como surdisse do nada, de lugar nenhum, desfere o golpe ao intruso que lhe viola os domínios! A mais bela espécie da água doce, zelosa do seu espaço de caça, assim cativa a vida: atrás do brilho provocador, a fateixa! Faltam-nos onze palmeiras para compor a dúzia. Agora dê-se aconchego merecido à nossa truta: atapete-se, de ervas e folhas de hortelã, o cacifo de vime. Um cigarro, depois, longe do mundo e suas maleitas, enquanto se navega pela paisagem.
Da próxima vez (ficou devoto, pressinto), por certo, perderá menos amostras nos ramos dos salgueiros, nos musgos do fundo do leito. Da próxima vez, conhecerá alguns dos segredos do rio, o caminho para ludibriar as silvas, outro rigor no gesto ao lançar a “pena de gaio” sem ser visto pela presa. O provérbio é antigo, “não se pescam trutas a bragas enxutas”. Mas regressar a casa com o cacifo cheio de hortelã brava não deslustra: há o dia da poesia, há o dia do predador.

*
Truta moleira
(Para quatro pessoas)

Doze trutas de pinta vermelha, tamanho não superior a um palmo, de preferência cozinhadas no dia da captura.Limpas e enxutas, temperar com sal grosso. Envolver depois em farinha de milho. Frigir em azeite muito quente. Batata nova (pequena), cozida, acompanha as nossas trutas: chegam à mesa em travessa decorada com folhas de hortelã. A hortelã verde devolve um travo de rebeldia perdida. Evitar o limão.
Completar o prato com uma salada de agriões.
Bebida: branco, se possível, da Quinta de Tormes.
Tangerinas à sobremesa.
Por último, a entrada: fatias de presunto e broa de milho.
A melhor época para saborear truta do rio é entre Março e Maio.
No final do repasto, se é crente, pedir ao Senhor que continue a dar graças aos silenciosos pescadores da água doce.

(Publicado no livro Receitas dos Nossos Amigos e Outros, editado recentemente pela Coop. Árvore)