segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A palavra redimida

CACHIMBO
(a andré breton)

… isto é um poema!


OFÍCIO DE POETA

longínquo corso de palavras.


PÃO FRESCO

uma fisga
apedrejando a memória
no mais longe de mim
o cheiro a pão fresco
que a mãe cozia
antes do sol nascer


MANHÃ

verde conspiração
de luz e silêncios.





ATITUDE PERANTE A MORTE


Os lisboetas
exibem uma atitude amorosa
perante a morte
basta por exemplo termos
em linha de conta
o cemitério dos prazeres.



Á SAÍDA DO CAFÉ

dentro do carro funerário
um caixão e
dentro do caixão um morto.

o motorista sorria para o homem
sentado a seu lado.


NOITE
as árvores repousam
do seu cansaço verde
cingidas ao sono dos pássaros
depois vêm as estrelas
e fazem os ninhos
dentro da noite.

[escritos dos anos oitenta do outro século]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Vida feliz

Até à data a ninguém ocorreu escrever
um livro de como passou a vida feliz.
E já que o homem russo está acostumado
a inventar a sua vida e não a edificá-la,
é muito provável que um livro sobre a vida
feliz o ensine a inventar a felicidade.




Máxino Gorki

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O narrador no funeral

Um de Dezembro de dois mil e nove. Chuva finíssima, como no dia em que a avó abandonou a casa térrea, persistente e fria. Regresso imprevisto. A capela, sem beladonas nos altares porque não é o seu tempo, está cheia. Há gente, como nas missas da minha infância, a seguir o ofício divino fora do templo, debaixo de chuva. Gente que a memória passa as mãos no rosto e limpa as marcas para eu reconhecer. Como folhas da nogueira a encobrir a água do poço e tu metes as mãos na água fria, apartas a opacidade – o gesto, é certo, agita, turva as águas, mas há um instante de limpidez, uma fissura que te permite adivinhar o transcorrido. Do interior da capela chegam cânticos, coro de mulheres. As vozes avoaçam pelo meio da chuva, quem escuta, quem acolhe, indefesas como pássaros tolhidos na neve, as sereníssimas palavras,
Feliz a morte dos que morrem no Senhor
Guardo para mim este fragmento de melancolia esperançosa. Ao funeral da avó, já o disse, não fui: a mãe, porque eu era menino apartou-me do último lanço de tristeza. Não houve cânticos, por certo, no funeral da avó – alguém teria a coragem de juntar alegria à sua morte? O narrador, persistente, ou presciente?, abre-me um livro. Comprei-o há pouco no alfarrabista da Rua do Bonjardim, é um livro de conselhos às mulheres, da autoria do arcediago João B. Lourenço Insuelas (impossível omitir o nome). Abre-o ao acaso: “Para as solteiras pobres, existem dois caminhos gerais: o serviço doméstico (criadas) e as fábricas (operárias). Devem amar o trabalho, com lealdade, diligência e competência. Se tiverem as qualidades necessárias, e devem sempre esforçar-se por aumentá-las, bem podem criar-se um ambiente favorável, que tornando-as simpáticas e prestimosas, muito concorrerá para lhes garantir o suficiente para viver, acompanhado de certa estima e carinho, que, até certo ponto, saciam a sede de amor e estima, que existe no seu coração. A causa do infortúnio de muitas mulheres é a sua falta de amor ao trabalho e a sua quase completa escassez de virtudes morais”. Em primeiro lugar, a escrita do arcediago – a todo o momento uma vírgula trava, a extremosa dona de casa hesita, abranda na simplicidade do pensamento e seus suaves alçapões. Há livros cruéis cheios de bondade, o que o narrador folheia ao acaso pertence a essa literatura das palavras sem alma. Deixemos o arcediago em sossego com o seu Amor Mais Alto, Oficinas Gráficas “Pax”, Braga, 1948, exumados da solidão dos livros sem dono. E os livros sem dono são cães velhos abandonados longe de casa: uma tristeza imensa embacia-lhes os olhos.

A onda

Vão maus os tempos d’agora
Para cousas de poesia;
Cresce a onda: a prosa fria
Tudo invade e nos devora.

Quando surge a luz da aurora
Ninguém ouve a cotovia,
E o trovador de algum dia
Canções d’amor já não chora.

A musa veste á burgueza,
Apolo frisa o topéte,
Fuma á porta da Havaneza;

A vindima não promette.
O Pindo causa tristeza...
Adeus, ma tendre musette!

JOÃO PENHA