quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Cidade submersa

submersa a cidade, abraço
húmido e vagaroso. os que vêm
de maio (agora no pousio da escrita)
não entendem a névoa
muito menos a melancolia
das camélias floridas.
procura
procura os esporões
da magnólia (resistiram
a todos os frios)
prontos a ceder à brancura
e talvez descubras errático destino
.

sábado, 24 de janeiro de 2009

A pedra cabisbaixa

*
Tu não sabes, a mulher das colinas
esperou por mim a vida toda. Admitiu
o impossível conselho teu: não dorme
para perseverar a juventude.
Uma ave silenciosa diz-me o atalho das colinas,
a mulher sustém um lírio contra o peito.
Peço, peço-lhe que me leve junto do muro,
tu sabes, onde se derramou o sangue.
Ela diz: os campesinos venderam tudo
e abalaram da fome
a pedra cabisbaixa do muro partiu também.
Eu conheço a voz, esta voz rouca
como silêncio do lírio morto.

Paramos num sítio seco, terra pobre
terra pobre, desabrigada da mudez afável
das árvores: a mulher devolve o lírio
à límpida voracidade da luz. E parte
como se fosse ainda rapariga, sem olhar para trás.
Descubro sinais da migração da pedra
o teu nome. Apanho do chão o fogo adormecido.

Rebelde melancolia, a palavra.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Mãos na cabeça

Devagar caminhavam, as mãos na cabeça. Viam o fascínio fresco do rio; na lentidão dos olhos adoravam as trutas. Nunca estes homens comeram um peixe. Na Primavera subiam, eles e o gado, ao monte: falavam com as árvores, mascavam bagas azedas. Desciam, no dealbar do Inverno, por caminhos de terra batida. Da margem esquerda do rio, bebiam a limpidez da água para desagasalhar o sono das trutas. Abraçados à noite, endoideciam. Abraçados à noite.

*

Pele branca

A menina tinha a pele branca, azuis os olhos. Azuis, como lagos profundos. Pelo Maio, saía da casa em ruínas: ia com as borboletas à caça de aromas. Colhia flores silvestres, oferecia-as aos camponeses. Em troca recebia vinho e sorrisos. Quando nasceste, súbita tempestade destruiu a nossa aldeia. As enxurradas levaram cabeças de gado e de gente. Ano de penúria. Contou-lhe a velha louca, vencedora do dilúvio. Nesse dia, nova borrasca abafou o povoado. Em clamor, os sobreviventes procuraram a menina. E ninguém, e ninguém a viu: como se diluísse no azul profundo dos olhos. A casa em ruínas foi agora recuperada para turismo no espaço rural.


In O Homem do Saco de Cabedal

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Trabalho em vias de extinção

Hoje vi empurrar para a borda alguns amigos. Eu podia fazer parte do grupo. Pela manhã disseram, a cada um, individualmente, O teu posto de trabalho foi extinto. Eu podia fazer parte do grupo, todos nós podíamos. Mas foram eles, os meus amigos. O João Paulo Mendes, o João Fonseca, o João Paulo Coutinho,o Alfredo Mendes, o Luís Bizarro Borges, a Rita Senos, a Paula Silva, a Paula Sanches, o Hernâni Doerllinger, o Manuel Almeida, o Jacinto Velhote, o Paulo Silva, o Paulo A. Silva, o Marcos Cruz, o Hernâni Pereira, o Amin Chaar, o José Reis - o Diamantino Fitas, que sabia do que eu falava quando falava de enxertia, de abóboras ou de navalhas de Palaçoulo. Da terra, das coisas simples da terra. Perdi parte da juventude junto destes camaradas: é duro vê-los tombar da borda. A lista, enfim, é bem mais extensa. Fico por aqui, com um verso do Herberto a rematar a amarga prosa, “Puta de vida subdesenvolvida”.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O que diz a pedra

Enquanto a noite não desperta os esquivos animais bravios,
uma pedra debruça-se na água, sacia a sede.
Gesto submisso: a pedra bebe cerimoniosa, como se fosse
a última vez. O seu destino será idêntico
ao dos outros seixos que a água afeiçoou,
agora mirrados pelo estio. A vida das pedras
é um mistério. Que língua falam além do silêncio?
Que segredos encobrem quando nos olham
como animais humildes?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Neve

neve. outra vez a neve
palavra tépida e feliz
guardada da infância.

domingo, 4 de janeiro de 2009

OUVE, ISRAEL

Quando fomos perseguidos
era um dos vossos
Como posso continuar a sê-lo
se vos tornais perseguidores?

A vossa aspiração era
tornar-vos com os outros povos
que vos assassinavam
Agora tornaste-vos como eles

Sobrevivestes
aos que foram cruéis para convosco
Acaso a sua crueldade perdura
agora em vós?

Ordenastes aos vencidos:
“Descalçai os sapatos”
Tal como ao bode expiatório
Impeliste-los para o deserto

para a grande mesquita da morte
cujas sandálias são areia
eles porém não aceitaram os pecados
que quisestes impor-lhes

A marca dos pés nus
na areia do deserto
prevalece sobre o rasto
das vossas bombas e tanques

ERICH FRIED

In 100 Poemas sem Pátria,Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1979

sábado, 3 de janeiro de 2009

a palavra treme

a palavra maio treme de frio
quando dita em janeiro. deixemos maio e
seus subterrâneos fogos
em pousio. agora é inverno: a palavra
mais branca que conheço.

Os pós-modernos

O discurso pós-moderno é labiríntico,
descarta paradigmas e grandes narrativas, e em sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar Portinari e Felipe Massa; Guimarães Rosa e Paulo Coelho; Chico Buarque e Zeca Pagodinho.
O pós-modernismo não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Não há amor, há empatias. Sua visão de mundo deriva de cada subjectividade.

Frei Betto
(in Jornal Fraternizar, nº172, Janeiro/Março 2009)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

novos dias

Os dias novos do novo ano. É preciso sol,
um pouco de sol, para pôr a secar a melancolia.
Palavra curiosa, a melancolia: suave de ouvir,
difícil de esconder.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

a vitima troca de papel

O holocausto em Gaza
praticado com frieza pelos mesmos
que sofreram o holocausto.