sexta-feira, 28 de março de 2008

Da janela da noite


Da janela da minha noite

com a minha espingarda de dois canos

disparo furiosamente

virado ao céu

caem pequeninas estrela

ensanguentadas de azul

e eu tão só queria apenas

pregar um susto

um susto de verdade ­–­ adeus.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Luminoso abandono







Se a pomba não estivesse ali, tu não acharias a palavra. O vocábulo que definha, dilui-se como espécie cinegética na vegetação rasteira, mirrada pelo estio, dos montes. A palavra (já descobriste?) acomoda a cor à cor da ruína e assim despista o predador. Mas a pomba, ponto negro no luminoso abandono, atraiçoa-a (talvez não seja o verbo justo). A pomba (último habitante das cidades sem gente) redime o abandono – se não estivesse ali, à janela, sereníssima expiação do mundo, jamais escutarias a triste cantilena do silêncio.




(Foto de Augusto Baptista)

quinta-feira, 13 de março de 2008

Magnólia

Uma árvore. Uma árvore é uma árvore. Tu observas uma árvore e o que vês? Faço o mesmo. Que vejo eu na árvore? Outra pessoa observa-a. Que encontra ele? Damos nome à árvore: é uma magnólia. Talvez a outra pessoa lhe quisesse medir a idade pelo tronco: olhou-a para lhe saber a idade: a beleza da magnólia florida diluiu-se nesse olhar. Agora tu, a brancura florida por dentro do inverno incendeia-te! É a minha vez de ler a magnólia: vejo as flores, o tronco, fico emaranhado nos ramos partidos, carecem de poda para cerzir a ferida. Uma árvore, uma árvore é uma árvore.

segunda-feira, 10 de março de 2008

[carta de minha mãe]


com as trovoadas de Maio comeremos peixes do rio
abandona a arte da subtileza e traz assobios para os cães.
os marmeleiros já têm melros e outros frutos
as mãos, que as tuas mãos regressem de monte a monte.

Rui Duarte Mangas
(“as raparigas trazem braçadas
de lírios como se fossem estrelas mortas”,
hidra editores)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Gosto deste gato





Gato sem nome, porque nome cativa a liberdade. E desconhece a palavra dos homens: às vezes, a palavra tolhe a alforria. Gosto deste gato, do rigor geométrico com que arruma a cauda, do silêncio predador acocorado no fundo dos olhos.



(Foto de Augusto Baptista)