sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Prim




















Por que razão

só escrevem poemas

aos gatos?

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Argumentos da antiguidade















copérnico pontapeou

a laranja que lhe aparecera

no caminho. mesmo assim mostrou

grande dificuldade em defender

a ideia de que a terra rodava.

disse: a terra é azul como uma laranja.

os juízes (de galileu) riram-se da parvoíce.

séculos depois, um poeta francês

chega a idêntica conclusão.

é redonda a crise terrestre


metafísica da terra

a terra estava fixa, entendia aristóteles.

o argumento evitava a dispersão

da matéria do Universo

no século dezassete jesuítas

portugueses ensinavam

no Japão, onde se desconhecia

que a terra era redonda

ptolomeu

fala, ainda hoje, de física celeste

no fundo das estrelas

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

A mesa


Devastador o silêncio da árvore estendida na terra, acabada de abater. A morte, por instantes, faz-se de secretíssimos cheiros: das folhas que perderam leveza e equilíbrio, dos ramos feridos na queda abrupta, do apertado coração de seiva. Ou será a alma? A alma da árvore liberta do corpo cativo. E logo uma luz imprevista abraça o lugar antes habitado. Luz, crua, sem sombra: incapaz, contudo, de amortalhar a devastação. Vi claridade assim, suave e limpa, em Agosto. O homem observa a grandeza da árvore, como se a medisse palmo a palmo, a inclinação do tronco, o peso da copa: define o lugar certo que irá acolher a morte. De um só gesto, acciona a moto-serra. Nem um minuto a voracidade dentada carece (veloz a morte das árvores!).

É um freixo, desconheço-lhe a idade: na margem do rio todas as árvores crescem para além do tempo. Já a luz habita o lugar devoluto, o homem separa os ramos do tronco como se aparasse a devastação do silêncio. Cortei o freixo para tocar a metáfora com as mãos, sentir-lhe o odor? O homem divide o tronco em três partes. Ressequida a memória da seiva, hei-de levar a árvore à serração. Achará o silêncio forma de mesa: construída por mim, na sombra do alpendre, rente ao cheiro intenso das figueiras. Prendo a tábua no banco de carpinteiro, procuro-lhe o correr, limpo-a, limpo-a de devagar. O mesmo farei às pernas da mesa e às travessas: o movimento da plaina sempre no mesmo sentido, no mesmo correr, até ao limite dos braços, depois o corpo se cabisbaixa e a lâmina desliza mais além. Ofício de aplainar é como a arte de enxertia: cada golpe será único, exacto, sem recuo. Madeira alinhada e limpa. É tempo de adir as tábuas. Eis o freixo em forma de mesa, metáfora utilitária, onde vou pôr romãs, livros, tangerinas, açucenas, peixes do rio.

Na brancura da toalha a mancha de vinho. Quando eu desaparecer, outros irão dar uso à mesa, tosca, do nobre e rijo freixo. Talvez me engane. O seu destino será o silêncio do alpendre, tampo cheio de coisas inúteis. Ou virá o fogo.


domingo, 26 de agosto de 2007

Afiar a melancolia


De repente, tu estás na página, dentro do livro. Como se fosses personagem. Conheces as colinas. O espanto tolhe-te! Alguém te roubou os sonhos, sabia teus segredos. Coisas simples: como o menino que sonhava ter um canivete. Vasculhas a memória, lembras-te do autor. E o livro? Em que livro dorme o menino do canivete para, como os homens da aldeia, afiar a melancolia? Terras do Meu País, A Lua e as Fogueiras, Fogo Grande? Pouco importa. Há anos, tu entraste na página – e ficaste. Como o menino, ao lado do menino. Não adianta perturbar o silêncio do livro que te levou à terra de Pavese. E conhecias o rumor das colinas, o sorriso das raparigas, o cheiro dos fenos curtidos pelo sol de Agosto, os homens bruscos, violentos, que encostados aos muros fumavam devagar o silêncio da manhã.

Alguns livros são assim: nunca mais voltarás a eles, e eles acompanham a tua vida. A tua vida toda. Não adianta procurar. Tu sabes onde está guardado, sempre soubeste. Segredo, um segredo só teu, que ninguém roubará. Nem mesmo tu. Temes, tu temes, voltar ao livro. Pode ser o desencanto, súbito desengano: como se encontrasses em lugar nenhum a mulher que amaste, verdadeiramente amaste, há muitos anos. O encantamento amoroso, que entrelaça a juventude, é irrepetível. O autor do livro, que tu temes abrir, foi mordido por esse estranho sentimento. E procurou, gesto supérfluo, o resgate do fascínio longínquo em todas as mulheres que sabiam a mar, ou traziam o cheiro suave dos fenos no corpo – ou eram apenas simples mulheres.

Outros livros vieram, outros livros, por certo, aguardam a tua caminhada silenciosa na página. Agora talvez não reconheças as colinas. Compraste e perdeste, eu sei, a pequena navalha, uma Opinel nº 3, cabo de madeira. Com ela, afinal, não aguçaste a vara de salgueiro verde, como os homens da aldeia onde nunca foste: escreveste, isso sim, uma palavra (um nome, talvez) no tronco do plátano, junto ao rio. A árvore cresceu, a generosidade do tempo encobriu a cicatriz. E a palavra, tu sabes, a palavra fez-se seiva, terá desaguado límpida no coração do plátano. A palavra, essa palavra de paixão quase clandestina, deixou de te pertencer. Como todas as palavras que escreveste sem endereço definido.

Esquece o menino na página. Procura uma palavra nova. Harmoniosa e precisa. Exacta. De fogo e rebeldia. Que te enrede, te sobressalte outra vez. Esquece as mulheres que sabiam a mar, e as que traziam os cheiros dos fenos fingidos no corpo. Procura o livro. Tu sabes onde está guardado, sempre soubeste. É uma parte distante da tua vida que resguardaste da luz, como se tivesses rasurado o rosto de uma fotografia a preto e branco. Entra agora na página, nesta página que escreves lentamente. O rumor das colinas, escuta, o harmonioso rumor das colinas. Persiste na escrita, como se voltasses a golpear o escorregadio plátano, rente ao rio. Não é, nunca será, gesto escuso a escrita que um dia se transmuta em seiva. Palavras viageiras, alcançam o ponto mais alto da árvore, apoderam-se da doçura dos frutos – voam depois, luminosas, no coração das aves.

Modo de vida

Faz da morte

uma certeza poética

a ressurreição é dúvida

trágica.



O receário

Observa o rio enquanto caminha, parece pescador de pluma a traçar mentalmente o lance. “A morada das trutas será sempre a limpidez da água”, diz o homem. E entristece envolto nessa fragilidade de sabedoria antiga. Atravessa a ponte: pára num círculo de sombra, espessa e balsâmica, que o cedro recorta na estrada. “Os romanos inçaram os nossos rios, traziam as trutas nos odres. Quem hoje sabe o que é um odre? A palavra”, continua o homem a pensar, no círculo de sombra, “a palavra: fala comigo, dir-te-ei de que tempo és”. Dá um passo em frente, ainda por dentro da sombra, polegar inclinado: o automóvel afrouxa a marcha, ele mantém a posição do dedo. E, de súbito, o gesto acorda longínquo pavor, as palavras receário, tridente, só depois: arena, a apinhada, colorida e rumorosa arena. Entra devagar, como se fosse muito velho. O automóvel arranca, e o homem informa o motorista: “Podia estar já morto, poupei-lhe a sua vida de gladiador”.

Um homem rente ao bosque

O homem vê um homem sentado na sombra dos
eucaliptos. Tão pequeno é um homem, tão grande
é o sossego do bosque.