No sonho dos gatos
existe um eterno pássaro
colorido
e uma árvore mais alta
do que o latir dos cães
Agora a andorinha
rente ao chão
veloz primavera
nos olhos do gato
A natureza cultiva a paciência. Roubaram-lhe o chão, a terra, e ela jamais renuncia (as vitórias do homem são transitórias). Devagar, ilude a mortalha de pedra, amarinha na parede, aparece à janela e bebe o dia. Só o cão, por certo, como se chama o cão?, compreenderá a sereníssima paciência vegetal. O cão. Que fareja este cão de caça, longe da serra, longe dos rastos orvalhados da manhã.
(Foto de Augusto Baptista)
deus vasculha a cabeça,
o silêncio, os bolsos
dos fiéis
só assim escusa a imoral simonia.
mataram o meu pai.
a mãe ficou amortalhada
nos escombros da casa.
dos nossos avós
eram filhos de sitiados: e partiu
em silêncio com a morte rente à pele.
Quantas palavras libertou esta máquina de escrever [máquina de escrever é uma expressão bonita, não desvirtua o acto secreto da escrita]? Agora é silêncio, exército atascado na lama, imagem aérea de bosque coberto de fuligem. Mas há uma centelha de vida na pequena luz que afaga as palavras queimadas.
(Foto de Augusto Baptista)
Quando noite se grafava noute, José do Telhado era um homem temido, Camilo escrevia romances sem corrector automático, Ana Plácido bordava a acácia do Jorge, em ponto cruz, num pano de linho. A Palavra noute procura abrigo, desliza como água fresca na tua garganta. Noite é o medo, é o medo a fugir dos teus lábios.
(Foto de Augusto Baptista)
Adivinham-se as divisões. Os azulejos da cozinha; o rasto da chaminé a trepar na parede, o abrigo das traves de carvalho. Quando se tornou projecto em tamanho real, alguém escreveu povo na parede da sala de jantar. Sim, ali era a sala. Havia uma mesa, quatro cadeiras, uma fotografia do casamento na solidão da parede. Ao domingo, sobre a mesa, a jarra de margaridas tinha por companhia O Primeiro de Janeiro: a infindável aventura do Príncipe Valente, os bonecos do Sam Payo a acirrar a tristeza, partia o Niassa rumo às colónias com mais um carregamento de melancólica bravura. Do pequeno jardim em frente, quando a casa era casa, irrompeu a voz, “Mãe, mãe, ó mãe… o menino já sabe andar!”
(Foto de Augusto Baptista)