terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Natal na guerra




Noite alta. Na Cantina do Freitas, em Moçambique, jogava-se com vício e paixão. No fim de cada partida havia sempre grande alarido. Os vencedores, ávidos, conferiam os ganhos, metiam as moedas, as notas, nos bolsos do camuflado. Os azarados lamentavam as perdas com pragas, blasfémias. Para quem perdia, havia, de certeza, marosca nos lances. Suspeita misturada com o cheiro a tabaco, liamba, cerveja, suor. Por vezes, estalavam ferozes zaragatas.

Eu também fui depenado. Levantei-me furioso da mesa de jogo. Envenenado pela sensação de ter perdido com batota, rosnei insultos, soltei palavrões. Mas já outro tomava o meu lugar na mesa da lerpa.

Esse minúsculo reduto militar, onde antes funcionara a cantina do Freitas, ficava entre o Malawi e a Zâmbia, na província de Tete. Ali, os serões da tropa eram iguais. Sempre iguais. Nessa noite, consoada de 1969, não houve trégua. A estúrdia e os excessos até subiram de tom.

Agastado, a ruminar desforras, procurei consolo na minha viola. Essa vítima dos meus maus blues acompanhava-me para todo o lado. Dessa vez, nem a viola me valeu. E saí.

A caminhar ao longo do arame farpado, sentia-me outro. Levantei os olhos para o céu. Pensei no Natal. E tentei descobrir o tal astro mágico que guiou os reis magos até Belém. Ébrio de estrelas, perdi-me naquela refulgente aletria cósmica, esqueci a batota, as minas, as emboscadas. A picada. E, no entanto, esse palco de tragédias estava ali, à vista.

Subitamente um vagido encheu de sentido a noite. A poucos metros, numa palhota para lá da cerca de arame farpado, nascia um menino. Um menino negro, entre palhas
.

Jaime Froufe Andrade

sábado, 28 de dezembro de 2013

[Uma pedra incendiada]

*
A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas.
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas.
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água



Daniel Faria

Explicação das Árvores e de Outros Animais
ed. Fundação Manuel Leão, Porto, 1998

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

TRAIGO LA CAMISA ROJA



*

Na minha juventude, conheci um rapaz que apanhava cobras à mão. De todos os rapazes, era o único a ousar esse gesto. Prendia-as entre o polegar e o indicador, um pouco abaixo da cabeça: as cobras perdiam a defesa, ondulavam o corpo e aquietavam. Quando estive na prisão, pensei muitas vezes no rapaz, na sua arte de surpreender. Ao contrário de quem age tomado pelo medo, ali havia intenção pacífica. Cobras da água, as outras, excepto as víboras, o rapaz também atenazava nos dedos. No mês de Agosto. Descia lentamente a mão na correnteza suave, no fiozinho sussurrante entre os seixos, e de um golpe só detinha a cobra. Dir-me-á: a cobra não pressentia o rapaz, pés mergulhados na água, a sua sombra, a mão cindindo a limpidez? O predador, é esta a minha explicação, no acto da caça esquece os rumores, transmuta-se. Em frente dos olhos da cobra havia um cardume, toda a atenção se concentrava nos pequeninos e irrequietos peixes. Vi o rapaz, certa vez, agarrar uma a cobra que saiu da água com um peixe atravessado na boca. O rapaz livrou o peixe, voltou a pôr a cobra na correnteza breve; e ela, despojada da presa, volveria à mesma posição, imóvel como uma pedra, até o descuido de outro peixe se abeirar do perigo. Por que lhe conto isto? Devolvia os peixes à água, vivos, esse rapaz sem o preconceito do medo. Muitos anos depois, encontro-o homem feito. Pergunto-lhe se ainda apanhava cobras à sua maneira. E ele deveras se assustou perante a lembrança dos seus devaneios juvenis.




Imagem extraordinária. Volto a Lisboa, neste meu estado de agora eterno clandestino. Numa das ruas na zona do Chiado encontro um mendigo, de cócoras, no passeio. Outros vi, ténue a fronteira entre a penúria e a sobrevivência, a memória do mundo regressa à incerteza medieva. O acocorado, como guerrilheiro na mata, renega a linguagem dos homens. Ladra. Sobre o passeio tem uma espécie de piano, brinquedo de criança adaptado à circunstância, passa os dedos nas teclas, escorre uma música distorcida, nem chega a levantar voo. Nessa cama de ruídos desarmoniosos o homem despeja: “ão ão, ão ão, ão ão…”. Ladrar de mastim preso a estaca, esquecido ao sol, rouco de clamar por água. Na Idade Moderna vários artesãos se dedicaram à escrita de autobiografias. Pela palavra grafada aspiravam iludir a insignificância e, por esse modo improvável, ascender na hierarquia social, repelindo a revolucionária, talvez irrepetível, coragem proletária da futura Comuna de Paris. Por esses textos íntimos, seja o do artesão de Barcelona, de Londres ou de Antuérpia, cintilam abundantes referências à cultura clássica. O sonho de Ícaro, quase sempre, paira sobre as palavras quotidianas. Os artesãos queriam libertar-se do silêncio gregário sem correr o risco de queimarem as asas. Veja o equívoco histórico! Eles almejavam ser a vanguarda (talvez não ousassem tanto…) sem cravarem uma baioneta num aguazil, sem incendiar uma igreja ou assassinar um rei. O indigente de Lisboa, por certo, desconhece Ícaro. Homem de cócoras não sonha – desaprova a humanidade.



Por que motivo não vislumbra coragem revolucionária nos artífices do século dezasseis. Os relatos de suas vidas, se repararmos bem, sopram um sentido histórico: quem antevê esse sentido no quotidiano arroteia o terreno maninho que há-de levar à “sociedade avançada”. Sobre outro assunto, todavia, hoje gostaria de escrever. Perturba o homem, da sua última carta, acocorado. A desumanizar-se. A cobra muda de pele, mantém a identidade. O seu homem de Lisboa, ladrando rouco para o chão, está certo ou errado na atitude que tomou? Ele, perdigueiro encharcado, sacode a humanidade para a transfigurar. Como fruto maduro caído na terra: apodrece e se ilumina no húmus do devir. Sabe, eu gosto de conversar com os choupos de folha branca. Das árvores minhas conhecidas, tenha-o como a mais comunicativa. Sozinha, isolada, acabrunha-se na melancolia. “Triste como um choupo”, dizem na sua terra. Em bando, os choupos guardam o sonho de Ícaro, um pouco de vento e logo irrompe a festa. Desde menina, quando passo por uma manada de choupos de folha branca: paro. Fico ouvindo sua fala. Inaudito pressentimento, as palavras dos choupos brotam de seiva livre. Falo-lhes, eles riem – sempre fruíram essa indelicadeza – , riem como se desentendessem a língua. Na minha passagem pela prisão, nos momentos de maior desalento, desejava um choupo por companhia: para desentristecer a amargura. Permita-me o conselho, desentristecer será a difícil luta do futuro, que é o nosso tempo. A quem não fala com eles seria absurdo ouvir alguém a pedir um choupo, pedia livros. Afinal de contas, os livros memória tangível das florestas voadoras são. Certa vez chegou-me um de Georg Trakl, autor que conhecia pela rama, e bastariam três versos para me tornar forte e firme como a araucária, que lhe falarei noutro momento: Baixinho vem aí a noite branca,// Transforma em sonhos purpúreos dor e martírio/Da vida pedregosa. A poesia, no seu mecanismo secreto, move o mundo – me avisavam os choupos de folha branca, fiz de conta que não entendi.



Desentristecer o outro será poética forma de luta, todavia inútil. Um combate perdido. O homem-cão, acuado, guerrilheiro que perdeu a mata, está feliz ou infeliz? Nem uma coisa nem a outra. Essa fronteira, essa paleta de sentimentos não existe mais numa franja vastíssima da humanidade. Hoje andei por Vila do Conde. No tempo da clandestinidade de homem vivo encontrei nesta terra pontos de apoio seguros. Amizades profundas. Observo três velhos sentados à sombra das tílias, frente ao recinto da feira. Dois olham e sorriem da tarefa do outro velho: espalha, delicado, milho-miúdo junto dos pés e, por esse gesto, como pescador à linha engodando bogas, junta significativo cardume de pombas. Não excessivamente famintas, disputam o alimento sem a voracidade, por exemplo, das pombas de Lisboa. Dar de comer às pombas, e voltamos à palavra revolucionária, desentristece os dias iguais. O gesto generoso abria o sorriso dos velhos. As pombas fervilham rente aos pés do homem, do semeador, e esse mesmo homem chama-as pelo nome. Ou, pelo menos, alguém no bando tem nome. “Luís, anda cá, Luís!” Uma das aves responde ao apelo, fura o burburinho, asas levantadas como naus em mar sereno, e há-de vir comer à mão do velho. Desinteresso-me desse final. Olho as tílias, na sua grandeza, por causa dos seus choupos. Que línguas falam as tílias numa tarde quente de Julho? Estive para perguntar aos velhos, algum saberia dizer-me algo, uma patranha qualquer, que os velhos quando desconhecem coisas metafísicas, não se embrulham no silêncio prudente, inventam como um menino a descobrir o mundo. Ainda olhei um deles, seria deselegante de minha parte alarmar o convívio. Eles ficariam assustados, as pombas levantariam em alvoroço. A memória encharca de medos os velhos. Eu também fui velho, mais velho do que os camaradas das pombas. Fui velho e a memória, por centos lances traiçoeiros, quis turvar a água limpa. No essencial, creio, mantive a luminosidade. Velho, fui muito velho e não envelheci.





Vagueei pela rua do homem que ladrava. Não o vi. Talvez tenha concluído a metamorfose e se fez à mata, ou terá viandado com o seu humilde viático para o nosso lado. E deste lado somos inomináveis, voz inaudível de choupo, descarecemos de registo. Lisboa. Cidade bonita, pena foi não achar os jacarandás floridos. Julho aproxima-se do fim. O Pessoa, no Chiado, pareceu-me, a um primeiro olhar, guardador de rebanhos transido, sitiado por cruzados da era do digital. Impaciente. Posar ao lado de desconhecidos cansa. De madrugada, quando a cidade enfim se apazigua em algum silêncio, regresso ao local. Imagino o homem-cão, na cadeira acoplada à estátua, a retomar a fala. Abre uma excepção, como quem deixa de fumar e acende um cigarro para sentir a inutilidade do gesto, do acto, se certifica do poder sobre o vício. O homem-cão, na linguagem dos homens, murmura: “Tu me conheces bem, da mesma família somos. Que nos falta se nada temos?” Pessoa responde, no indizível idioma de estátua: “Ó meu irmão triste, que proveito procuras tu num homem cheio de mágoa?” Devagar a cidade acorda, o homem recolhe a um beco qualquer a exalar a urina (está visto, cerveja muita não é a melhor bebida para a sede da mágoa). Houve um momento, sobre a manhã, que toda a cidade parecia habitada por gatos, por animais que andarilham na noite a delimitar território. Quando estive na prisão, nas cartas que escrevia, reinventava a rebeldia, entusiasmava a companheira de Karl, também ele preso político, a transformar em sonhos purpúreos dor e martírio. Mas era para mim mesma que eu falava. Agora, liberta de tudo, por que motivo declino na mágoa. Cesse, por momentos, cesse essa rigidez, camarada Duarte. Dê alguma atenção à minha presciência: desentristecer será, pois, o rumo da nossa luta. Não volto a Lisboa. De regresso, havia de passar por Sintra. No bosque do palácio de Monserrate, abracei árvores assombrosas, a tal araucária, camélias… Vi uma paciente árvore-da-borracha a engolir a parede da capela em ruína. Poderosa imagem: lembra jiboia a sorver elefante. Ouvi de alguém: o palácio e vasto jardim pertenceram a Francis Cook, milionário, fortuna granjeada no comércio de têxteis, que ostentaria o título de primeiro visconde de Monserrate. Não vislumbro, por esses lados, choupo de folha branca: ele me explicaria por que razão certos homens desprezam a pobre gente e, com esmero, cuidam das árvores.


Luz, suave luz penetra na nitidez das coisas. Um terreno baldio, alguns pinheiros ao redor. O estrado ao fundo, anfiteatro de improviso. Povo de S. Pedro da Cova, arrabalde de arrabalde nas fímbrias do Porto. Para me ouvir a palavra, nessa tarde de domingo estival, havia pequena multidão digna. Permita-me que reforce a ideia: uma pequena multidão digna. Dos camaradas presentes parte se compunha de antigos mineiros, esquivos da garra fascista, venceram a fome e a silicose. As minas de S. Pedro da Cova tinham encerrado há muito, eles ficaram, acalentados no orgulho de suas heroicas rebeldias. Esses homens e mulheres, a pobre gente de toda a parte, me fizeram outra pessoa. No comício, na suave luz que parecia perder a impureza ao atravessar o verde pinho, pela primeira vez, na longínqua vida, não me senti filho adoptivo. Descia à lhaneza das coisas, sempre fora esse meu desejo, e fui mineiro no uso da palavra livre, auditório bebendo meus gestos. A emoção abeira-se (um coro canta desde o fundo da memória Traigo da camisa roja/ de sangre de um campañero…). Eu sabia, a emoção, troca-me as palavras, é sincera como silêncio de pedra, indomável cavalo de fogo. E de súbito, Rosa, irrompo a falar de felicidade. Da felicidade. Se eu estivesse no lugar de um dos muitos jornalistas, acomodados à sombra dos pinheiros, teria dado este título ao meu último (seu o revelar a ninguém) comício: “Um velho feliz fala da felicidade”. A felicidade, fruto único de quem luta; essa felicidade que os antigos mineiros sabiam por amarga experiência feita: dor e sofrimento vertidos em sonhos purpúreos. Terminado o discurso ao povo de S. Pedro da Cova, caminho pela multidão, os mineiros abraçam verdadeiramente felizes o camarada igual por dentro e por fora… O seria eu que os abraçava na casta leveza da luz? Logo que possa, irei Sintra. Perdoe-me a dúvida: se a árvore-da-borracha, quero ver, abocanha ruínas de capela.



PS.: Reencontrei o homem-cão, no mesmo sítio, na mesma postura. Desta vez tocava realejo.