terça-feira, 18 de agosto de 2015
Chegado era o tempo
Chegado era o tempo das crianças vestidas de
serpentes.
Exacerbadas em seu gosto pela música.
Dormiam no fogo, em brancos cavalos atraves-
savam jardins.
A música emanava dos corpos, transmitia-se à
vegetação.
Iam umas nas outras, as crianças,
levando nos cabelos o cheiro violento das tangerinas.
(...)
Isabel de Sá
Autismo
&etc, 1984
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Isabel de Sá
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
Dalila Pereira da Costa
Vila do Conde
(Ou a força da fé)
No rio, dois homens e dois peixes (e depois um menino)
nadavam através da água transparente de cristal.
Dum lado eram margens com árvores e erva e sinceirais
verdes.
Do outro era o cais liso de pedra branca e muitos vapores
acostados doutros tempos.
Perguntei: como conseguiram nestes tempos água tão
transparente?
Os homens disseram: a água transparente do rio a con-
seguimos com orações. E com orações acalmamos
as tem-
pestades do mar.
Mas que palavra esquecida me concedeu o santo no
secreto ermitério de verde e perfumada
doçura?
Na cidade, dum lado e doutro do rio, subsistiam ainda
núcleos de casas antigas pela imaginação
criadas. Suas pe-
quenas fachadas ornadas apertadas entre
si se debruçavam
sobre a rua, no tempo oscilantes.
Do outro lado, ao sopé do monte de Sant’Ana, três,
quatro, se reuniam à volta do ano de
1725, cravado ao alto
de porta e vibrando ainda noutros anos
vizinhos, como
núcleo mais forte do passado.
E ao fim, no pátio da última casa, através da janela
gradeada, caía a água em fios
simultâneos ao badalar
da campainha.
E ainda através da janela se via a folhagem da trepa-
deira e logo ali aproximado a toalha
lisa e refulgente do
mar azul prata.
27-VI-1980
Dalila
Pereira da Costa
A
cidade e o rio
Edições
Nova Renascença, 1982
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Vila do Conde
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
[Amoras]
*
Estamos no campo. Vamos apanhar amoras. Vamos
correndo, rindo como crianças. Quando regressa-
mos a casa temos as mãos tingidas e feridas de
mugir as silvas. Preparando as amoras para a sobre-
mesa penso: eis o caviar silvestre!
Ana Hatherly
A Cidade das Palavras
Quetzal Editores, 1988
Estamos no campo. Vamos apanhar amoras. Vamos
correndo, rindo como crianças. Quando regressa-
mos a casa temos as mãos tingidas e feridas de
mugir as silvas. Preparando as amoras para a sobre-
mesa penso: eis o caviar silvestre!
Ana Hatherly
A Cidade das Palavras
Quetzal Editores, 1988
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Ana Hatherly
quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Fruto
Por um desvio semântico qualquer, que os filólo-
gos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã
à infância das aves. De facto envelhecem quando a
tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos
surgem tão carregadas de tempo.
Carlos de Oliveira
Trabalho Poético
Livraria Sá da Costa Editora
gos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã
à infância das aves. De facto envelhecem quando a
tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos
surgem tão carregadas de tempo.
Carlos de Oliveira
Trabalho Poético
Livraria Sá da Costa Editora
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
Canção
*
A noite é tão profunda que entra pelos meus
olhos. - Tu não verás o caminho. Tu te
perderás na floresta.
- O ruído das cascatas enche-me os ouvidos. -
Tu não ouvirás a voz do teu amante, esti-
vesse ele a vinte passos.
- O cheiro das flores é tão forte que desfaleço e
vou cair. - Não o sentirias se ele passasse
por ti.
- Ah! ele está tão longe daqui! do outro lado
da montanha; mas eu o vejo, e ouço, e sinto,
como se me estivesse tocando.
Pierre Louÿs
O Amor de Bilitis
trad. Guilherme de Almeida
Livraria José Olympio Editora
A noite é tão profunda que entra pelos meus
olhos. - Tu não verás o caminho. Tu te
perderás na floresta.
- O ruído das cascatas enche-me os ouvidos. -
Tu não ouvirás a voz do teu amante, esti-
vesse ele a vinte passos.
- O cheiro das flores é tão forte que desfaleço e
vou cair. - Não o sentirias se ele passasse
por ti.
- Ah! ele está tão longe daqui! do outro lado
da montanha; mas eu o vejo, e ouço, e sinto,
como se me estivesse tocando.
Pierre Louÿs
O Amor de Bilitis
trad. Guilherme de Almeida
Livraria José Olympio Editora
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