*
Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
- A santa sobre os abismos -
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.
Adélia Prado
Terra de Santa Cruz, ed. Nova Fronteira, 1981
sábado, 30 de novembro de 2013
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Aos vindouros
*
aprendam a ler nas entrelinhas,
nos punhos ígneos e fechados,
na corda, na pedra que nos naufraga
e no amor sonâmbulo
e nesta flutuação amarga
de cavalos-marinhos prisioneiros.
E julguem,
depois julguem-nos com dureza.
António Osório
A Raiz Afectuosa, ed. de autor, Abril de 1972
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terça-feira, 26 de novembro de 2013
Diversos són els homes i diverses les parles
*
Diversos são os homens e diversas as falas,
e acordaram muitos nomes para um só amor.
A velha e frágil prata torna-se tarde
parada na claridade sobre os campos.
A terra, com armadilhas de mil finas orelhas,
cativou os pássaros das canções do ar.
Sim, compreende-a e fá-la tua, também,
desde as oliveiras,
a alta e simples verdade da voz prisioneira do vento:
"Diversas são as falas e diversos os homens,
e acordarão muitos nomes para um só amor."
Salvador Espriu
trad. Manuel de Seabra
A Pele de Touro, Publicações Dom Quixote, 1975
Diversos são os homens e diversas as falas,
e acordaram muitos nomes para um só amor.
A velha e frágil prata torna-se tarde
parada na claridade sobre os campos.
A terra, com armadilhas de mil finas orelhas,
cativou os pássaros das canções do ar.
Sim, compreende-a e fá-la tua, também,
desde as oliveiras,
a alta e simples verdade da voz prisioneira do vento:
"Diversas são as falas e diversos os homens,
e acordarão muitos nomes para um só amor."
Salvador Espriu
trad. Manuel de Seabra
A Pele de Touro, Publicações Dom Quixote, 1975
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domingo, 24 de novembro de 2013
domingo no corpo
*
as tardes de domingo, começam
sair de casa, como se fora para longe...
e voltar a ela, sem vontade de fazer nada.
tenho o domingo no corpo
minha mãe prepara a feijoada com solas para o almoço
meu pai dorme na tarde para a semana inteira
e ressona alto
as vacas e seu cheiro entranham-se-me
minha mãe tira leite, mais cedo que o habitual
e adormeço num silêncio quente
gosto de não existir neste tempo
meu pai, abeira-se de minha mãe. todos quietos.
eu não entendo nada.
talvez, por isso, pereça
a poesia
Aurelino Costa
Domingo no Corpo, Deriva Editores
as tardes de domingo, começam
sair de casa, como se fora para longe...
e voltar a ela, sem vontade de fazer nada.
tenho o domingo no corpo
minha mãe prepara a feijoada com solas para o almoço
meu pai dorme na tarde para a semana inteira
e ressona alto
as vacas e seu cheiro entranham-se-me
minha mãe tira leite, mais cedo que o habitual
e adormeço num silêncio quente
gosto de não existir neste tempo
meu pai, abeira-se de minha mãe. todos quietos.
eu não entendo nada.
talvez, por isso, pereça
a poesia
Aurelino Costa
Domingo no Corpo, Deriva Editores
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quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Lenha verde
*
a mãe desaprendeu a fala.
a mãe cativa, só o verde
dos olhos me aperta
e murmura como se eu fosse
ainda um rapazinho
desavindo com o sono.
digo, mãe
mãe, vou cortar lenha verde
zangarinho e alecrim
na mata das dornadinhas
faremos uma fogueira pelo s. joão.
O Primeiro Dia
pequena antologia da mãe na poesia portuguesa
escolhida por José da Cruz Santos
ed. Modo de Ler
a mãe desaprendeu a fala.
a mãe cativa, só o verde
dos olhos me aperta
e murmura como se eu fosse
ainda um rapazinho
desavindo com o sono.
digo, mãe
mãe, vou cortar lenha verde
zangarinho e alecrim
na mata das dornadinhas
faremos uma fogueira pelo s. joão.
O Primeiro Dia
pequena antologia da mãe na poesia portuguesa
escolhida por José da Cruz Santos
ed. Modo de Ler
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terça-feira, 12 de novembro de 2013
Encontro
Da árvore vergada
chamei
pelo nome o peixe irado.
Tracei à volta da lua branca
uma figura, alada.
Veio-me o sonho do caçador
que sonha cobrir a presa.
Castelos de nuvens sobre o rio,
é a minha voz,
luz de neve sobre as florestas,
é o meu cabelo.
Pelo céu sombrio
cheguei,
erva na boca, a minha sombra,
encostada à cerca de madeira, disse:
Leva-me de volta.
Johannes Bobrowski
Como um respirar, ed. Cotovia
Trad. João Barrento
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os dias imperfeitos
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Não sei nada
Conheço as palavras pelo dorso. Outro,
no meu lugar,
diria que sou um domador de palavras. Mas só eu – eu e os
meus irmãos – sei em que medida sou eu que sou
domado
por elas. A
iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem
o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho deter-
minado antes da grande aventura.
Sim.
Conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio.
O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez
inchar,
rolar umas sobre as outras as palavras. As palavras
são seixos
que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e
caem. São o
contrário dos pássaros, embora “pássaro” seja uma
das pala-
vras. A minha vida passou para o dicionário que sou.
A vida
não interessa. Alguém que me procure tem de
começar – e de
se ficar – pelas palavras. Através das várias relações de vizi-
nhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez
venha a
saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não
sei.
Ruy Belo
Obra Poética, volume 1
Editorial Presença, 1981
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Ruy Belo
terça-feira, 5 de novembro de 2013
As chuvas
os estorninhos outra vez
em bando pelo meio da névoa
que penúria tão funda os arrasta
como o povo do nosso tempo?
povo, povo onde deixaste o fogo libertário?
os estorninhos, dizia
e os choupos do caminho
perdem o frenesim das folhas
tristes quedam no afago da chuva
em bando pelo meio da névoa
que penúria tão funda os arrasta
como o povo do nosso tempo?
povo, povo onde deixaste o fogo libertário?
os estorninhos, dizia
e os choupos do caminho
perdem o frenesim das folhas
tristes quedam no afago da chuva
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sábado, 2 de novembro de 2013
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