quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Cântico e eucalipto



És o pequeno estame
sobre a morte     o  abismo
em luz coagulada
pesando em meu canto


Ah     como vens navegável
em meu peito (da ausência
ao claro rio) da alada presença
à haste vigilante

se amar-te é possuir-te
em aquedutos de alva

se banhar-te os seios
é nimbar-te em seiva
                      de eucalipto.


Aureliano Lima
Cântico e Eucalipto, Brasília Editora, 1979

domingo, 27 de outubro de 2013

Una Ventana al Egeo



Me asomo a la ventana
que dejó entreabierta el poema.
Es triste mirar hacia atrás
y sentir sobre los hombros
ele peso de lo irrepetible.
No volveré a cumplir treinta
em la isla griega de roca desnuda,
ni volveré a taratear nunca en domingo
aquella tarde de abril
en la que me cegaba
la rara avis de la luz egea.
La ventana terminará por clausurarse
y los dias inolvidables de mi vida
quedarán como siempre
del lado que me execluye.

Lauren Mendinueta

in revista delphica
letras & artes, número um, 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

26 de outubro


temos de voltar à rua
arremessar palavras
aos mercadores da tirania

Moda da Menina Trombuda


É a moda
da menina muda
da menina trombuda
que muda de modos
e dá medo.

(A menina mimada!)

É a moda
da menina muda
de modos
e já não é trombuda.

(A menina amada!)


Cecília Meireles

Obra Poética, José Aguilar Editôra, Rio de Janeiro, 1967

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Virá a morte e terá os teus olhos



Tu não sabes as colinas
onde se derramou o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós largámos
a arma e o nome. Uma mulher
olhava para nós quando fugíamos.
De nós só um
parou de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
Agora é um trapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera-nos nas colinas.

Cesare Pavese
trad. Carlos Leite
Trabalhar Cansa, Ed. Cotovia, 1997

Três fragmentos de Safo

1

Que sobre os que me condenam desabem
os ventos e as inquietações.


2

Penso que jamais, em tempo algum,
verá a luz do sol uma rapariga
que pelo saber se te possa comparar.

3

Mas tu, se és meu amigo, escolhe
uma companheira mais jovem, pois eu,
que sou mais velha, não aceitaria
viver contigo.


Poesia Clássica Traduzida
Albano Martins

delphica
letras & artes, número um, 2013

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Subúrbio



A custo de pé se mantêm os muros
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos,  os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das
                                                             janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.

Guillevic

Trad. David Mourão-Ferreira
Editoe«ra Ulisseia, 1965

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

[A voz emboscada]

Não há um amigo
perto. Outros pés
não há que tragam
o ir e o vir
de um milhar de ruas

Há uma boca
industrial e devora
a raiva toda
dos lugares.

Há a voz emboscada
nos livros por ler
os pulsos que não
nos levam já
a qualquer carta
pelo menos hoje
pelo menos carta.

Há as mães acordadas
e emigram connosco
noite após noite
para o dia seguinte

e a cicatriz que cose
pela face alguns
remendos doutras
companhias.

Victor Matos e Sá

Companhia Violenta, ed. Centelha, 1980

[Ni una palabra]


Ni una palabra


brotará en mis labios

que no sea

verdad.

Ni una sílaba

que no sea

necesaria.

Viví

para ver

el árbol

de las palabras, di

testimonio

del hombre, hoja a hoja.

Quemé las naves

del viento.

Destruí

los sueños, planté

palabras

vivas.

Ni una sola

sometí: desenterré

silencio, a pleno sol.

Mis días

están contados,

uno,

dos,

cuatro

libros borraron el olvido,

y paro de contar.

Oh campo,

oh monte, oh río

Darro, borradme

vivo.

Alzad,

cimas azules de mi patria,

la voz.

Hoy no tengo una almena

que puede decir que es mía.

Oh aire,

oh mar perdidos.

Romped

contra mi verso, resonad

libres.



Blas de Otero



domingo, 20 de outubro de 2013

Linho



eu sou o outro


trago palavras das lonjuras

sabem a frutos silvestres

algumas perderam o sentido

ficaram cegas

como casas abandonadas



eu sou o outro

o que procura o burel antigo

gestos perdidos

na ténue luz da tarde

o fogo doce dos lábios a lavrar no linho



eu sou o outro

o que sempre perde

e volta ao princípio.





sábado, 19 de outubro de 2013

Os sinais

XV


Em tão pouco em tão nada afinal acredito
Só me empolga o rigor com que o digo e não digo


David Mourão-Ferreira

Obra Poética, 2º volume

Os sinais

X

As pegadas do Sol nem sempre a Lua
lentamente as desfaz quando se oculta



David Mourão-Ferreira

Obra Poética, 2º volume

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Um Barco para Ítaca

ULISSES


E havia laranjas. Havia um país de leite
e de limão.

Havia cântaros carregados de azeite.

Pedras e cabras.

Raparigas.

Ai as ruas estreitas. E o sol. As sombras. Havia
                                                      uma canção

que falava do vento e das espigas.

E agora só palavras. Só palavras.

Minha nação já só de cardos e caruma.

Ausências. Fantasmas.


(...)

CORO

As palavras estão gastas e este tempo é de agir.

Precisamos dum barco. Um barco para partir

um barco para chegar. Um barco para encontrar

Ulisses perdido no mar.

Manuel Alegre

Um Barco para Ítaca, ed. Centelha, 1971

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um jeito

Em silêncio
te vestiste
em silêncio uma vez mais
ternamente mentiste


Em silêncio
fechaste o portão
em silêncio a-
jeitaste o coração.

Ulla Haln
versão de João Barrento

A Sede Entre os Limites

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Fogo

o fogo outonal nas árvores

prova que a beleza da natureza
se estende até à morte.

  uma morte transitória.

sábado, 12 de outubro de 2013

Da vida dos anjos


anjo da guarda
ou anjo que aguarda

qual deles é o imperfeito?

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Para Wang Lun

Li Bai entra no barco, vai partir,
        de súbito ouvem-se passos e canções, na margem.
Tão profundas as águas do lago do Pessegueiro em Flor!
       Não tão profundas como o amor de Wang Lun.




Li Bai

Poemas de Li Bai
trad. António Graça de Abreu

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A menina de Wu

O vinho corre
        em taças de ouro.
Chega a menina de Wu,
        quinze anos montando um cavalo fogoso.
Tem sobrancelhas pintadas de negro,
        as botas de cetim vermelho.
Ainda tropeça nas palavras,
         mas canta como um rouxinol.
No calor da festa
         aconchega-se em meus braços.
Que faremos ambos
        por detrás das cortinas da cor do hibisco?


Li  Bai

Poemas de Li Bai
Tradução de António Graça de Abreu
Instituto Cultural de Macau, 1996

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Fujo da memória


Oiço os teus conselhos
se piso o chão descalço
(era adolescente)

Oiço pedir água
troco

E o teu ventre
pulido
de novo me arrepia


António Reis

Poemas Quotidianos, ed. Portugália, 1966

sábado, 5 de outubro de 2013

A caça

a caça. abriu a caça
os cães pela madrugada dentro sôfregos,
cheios de doçura e morte.