
(foto de Augusto Baptista)
Longe da vista dos criados, misturou areia fina e estrume de burro no húmus. Mezinha capaz de enxugar a acidez do solo, nunca a memória da terra. Pela raiz, o arbusto não cedia a fabulosa bondade de florir no Inverno. A natureza, fundeada em duráveis silêncios, embargava a criativa profanidade. Apaixonado amanho, inútil o desenredo. Olha de novo a camélia, desapontado. Mestre jardineiro, que povoa de exotismo jardins e brévias da foz do Douro até à Galiza, abriga a mágoa: um criado do horto aproxima-se, avisa-o da chegada de Venâncio Euclides. Ao morgado irá vender dois pés de mirtilo na justa idade de plantio, na altura certa de oferecer as primeiras bagas, luzidias como pena de estorninho.
Quando a carqueja do Marouço sacudia o pobre agasalho de neve, Venâncio Euclides galopava, solitário, na direcção do mar. Nesse tempo, viagem de assinante ilustre além dos limites da comarca haveria de passar pelo jornal A Cabreira. “Foi à cidade do Porto, d’onde já regressou são e salvo, o nosso estimado e bom amigo Venâncio Euclides de Sales, morgado de Vila Boa da Roda”. Partia pouco antes da primeira luz, um atalho evitava a passagem pelo centro de Braga, na vila nova de Famalicão acharia pernoita. Afeiçoavam-se, pela tarde do dia seguinte, os cascos ao empedrado da cidade grande. Na Quinta das Virtudes, concedia folga e penso ao cavalo.
O horticultor e jardineiro multiplicador guia a visita, demorada. Mesmo
A baga de mirtilo, diz o mestre jardineiro, depura a vista.
O morgado de Vila Boa da Roda ocupava a vida na veação e, no defeso, plantava árvores invulgares no jardim e no bosque. Exige a caça perna ligeira, gesto rápido, pureza na vista. Nas encostas do Marouço, entre a Chã da Fonte e o Penedo Gaio, derribou, sem apelo nem agravo, açafates de perdigões. Havia caça, nessa época, e o acto cinegético com arma de fogo estava restrito a gente de linhagem. Venâncio Euclides e duas perdigueiras – por morte legavam o nome às cadelas seguintes – entravam no monte pela aurora, volviam no cair da tarde. E a noite tinham já por companhia quando acercavam a Vila Boa de Roda, cadelas prostradas de cansaço, o caçador aprumado, polainas polidas no mato molar. Farto cinturão. Outras tantas perdizes o criado trazia, desgasto como os cães de parar, no bornal. O tempo, inexorável, sempre deixa sinais por onde apascenta os seus rebanhos. Uma das últimas caçadas virou triste cortejo de tiros errados, e as perdizes a levantar rente ao focinho das cadelas marradas – nunca, mesmo nos primeiros manejos de caçadeira, tivera pontaria assim desafortunada.
Qual é mês da colheita dos mirtilos?
No declínio do estio, quando os dióspiros botam corpo.
Na abertura da época venatória, pensa o morgado, já a fome das aves debica os dióspiros. O mirtilo também se conserva seco, como o figo, sem esbanjar qualidades medicinais, diz o mestre jardineiro multiplicador, como se passeasse no pensamento de Venâncio Euclides. Na Inglaterra é fruto disputado pelos artífices de ourivesaria e pelas pobres artesãs da renda de bilros.
O morgado, convencido, pede instruções sobre a forma de cultivo.
Em terreno magro, protegido dos ventos da serra. Ao contrário das camélias, deve tocar o sol logo pela manhã: o mirtilo decanta a limpidez da luz.
Sem grande esforço, descativa da terra vegetal dois pés do arbusto, agasalha as raízes em musgo humedecido envolto em serapilheira.
Enquanto caminha, o morgado de Vila Boa da Roda fala das camélias do jardim e das que se acoitam no bosque sob a grandeza das outras árvores, das trasladadas do Porto e da secular Alba Plena, herança florida do avô paterno. O jardineiro multiplicador de espécies parece indiferente à palavra. E ele sempre se entusiasma a ouvir a longa história da Alba Plena, a mais bela de todas, como se esta antiga raça de camélia da China tivesse a sua marca – a pessoalíssima marca de José Marques Loureiro.
Que ruindade o morde?
Mestre jardineiro pára.
É o São João…
Retoma a passeata no imenso labirinto vegetal. O morgado fica parado, a arrebatar o espanto,
Ainda é Inverno, mestre Marques Loureiro!
Detém-se, o dono do Horto das Virtudes pára de novo. Impossível agachar por mais tempo a tormenta,
Venha comigo.
Os dois homens movem-se em silêncio, levantam aqui e além pássaros que a fome faz afoitos, atravessam talhões de figueiras, pereiras, macieiras, limoeiros, a estufa dos ananases, depois o sítio das árvores de fruto de caroço, as primeiras a mostrar flor na Primavera. Os talhões estão divididos por sebes de alecrim: casa de joaninhas que se alimentam de insectos nocivos à natureza. Emaranham-se, por fim, no vasto reino colorido das camélias. A viagem cessa rente ao alfobre de mirtilos. Mestre jardineiro apresenta a jovem camélia, apartada das outras. E entristece.
Apuro-lhe há anos o destino, senhor morgado. Todavia, os caprichos da natureza cobrem os sonhos. Mandei um homem ao Douro em busca de estrume de jerico de almocreve, misturei esse estrume com baga de sabugueiro, que o mesmo homem mercou na Granja do Tedo, e areia do mar de Moledo: mergulhei aí as raízes e poucas vezes as humedeci. Ofício inútil, senhor morgado. Podemos criar nova variedade de camélia, mas nunca, por alquimia alguma, alterar-lhe o remoto destino.
Não o entendo, mestre Loureiro. Vejo aqui uma camélia perfeita, com carácter… botões sadios, folha luzidia!
Falha um pormenor: não floresce em Junho, meu bom amigo. O sonho era esse: criar a Camélia São João, de imaculada brancura como a Alba Plena. A noite das ervas de cheiro merecia essa variedade, seria a mais genuína camélia do Porto.
No Minho também há São João. Traz o povo rama verde de pinheiro e, no largo, quando arriba a noite, faz a fogueira: na labareda purificadora junta depois ramos de alecrim.
José Marques Loureiro, o jardineiro das Virtudes, está triste. Nem a imagem aromática das chamas a roubar a noite lhe enfraquece o desgosto.
há um aroma triste
no íntimo das palavras
quando escrevo com os olhos.
inquiro a leve pureza das aves
o rasto, o rosto da melancolia*.
* a melancolia é a forma mais luminosa da morte.
O que quereis em troca?
Nada. Quase nada, disseram.
Que apareças em público com roupa da nossa marca
a beber o nosso leite…
e se as febres te tolherem, diz que tomarás o nosso xarope.
Isso não farei. Quero vestir-me como os meninos do meu tempo; alimentar-me como os meninos do meu tempo, vencer a febre como
Impossível o teu desejo, alguém interrompe. O teu tempo perdeu-se, não existem meninos do teu tempo.
São homens?
Foram meninos, homens…
E depois?
Desapareceram, é a lei da vida.
O menino volta-se devagar, dirige-se à manjedoura. Acomoda-se na palha: adormece, sereno, embalado pelo bafo do tempo perdido.
À porta do estábulo, o desassossego agita a boa gente, agora indecisa a calcar estrume de dois milénios. Um deles, afoito, segreda algo ao ouvida da vaca.
Não!, reage o dócil animal.
Tu podias salvar humanidade da fome, da penúria!, implora o emissário afoito.
Sou muito velha para você me tratar por tu… Deixe-nos em paz!
Partiram. Uns de avião, outros de automóvel. Em redor do estábulo amontoam-se presentes. Roupas, fraldas impermeáveis, brinquedos de um tempo futuro. Dormirá mil anos, mil anos mais, o menino: emaranhado no sono, no sonho perpétuo de ser menino?
em terra de cegos
o amor é táctil
*
um burro carregado de lírios
é um poema de Lorca.
*adormece a contar estrelas
*
Deus fala direito por línguas mortas
fábrica para lavagem
(a seco), desintoxica-
cão e apuro das pala-
vras ainda possíveis.
O homem entra resoluto na noite, gesto em descostume, espanto juvenil de ver estrelas. Contar as estrelas, promessa antiga. “Desempenho impossível”, diz. E regressa a casa, impelido pelo conforto securitário. Desencantado. Antes de fechar a porta, um derradeiro olhar pelo céu limpo: “As estrelas são pequenos peixes, fugido cardume, no mar ao contrário”, diz o homem, a justificar o fracasso a si próprio.
Foi ele!
voz de fogo, voz de fúria.
Pausa breve.
O cerco, e o homem cai por terra, sangue vivo esponta nos lábios. A rapariga, os irmãos (são três) e o pai assim legam o desconhecido. Partem, leves e libertos.
Muito lentamente, o homem se levanta. Sacode as roupas, sacode a dor por gestos mais suaves ainda. Do bolso direito das calças tira o lenço: devagar, o lenço bebe o sangue dos lábios. Do outro bolso sai um cigarro: fuma-o, sozinho, no largo desabitado. Debruça-se, recolhe o saco de cabedal: avança, movimento dolorido, em direcção do nada. Antes de sair do largo (ou da página?), volta-se para mim (silencioso cronista), avisa-me: O narrador protege a personagem, foste tu o instigador do desacato!
Silencioso sou, silencioso fico.
Parado. O homem persiste parado, enxuga ainda os lábios como se os corrigisse. Aguarda, eu sei, uma palavra minha. Por outras aventuras andámos e nunca ninguém lhe fugiu ao respeito. Merece uma explicação, e eu não a sei desencantar. Que terá dito a rapariga à família de ódios silenciosos? Que fogo ancestral espavoriu como animal silvestre? Dos lábios da personagem apenas saiu uma pobre metáfora – e achava-a, erro meu, erro meu, saborosa como fruta da época.
Queixam-se
os peixes: todas as manhãs
a solidão do cardume é perturbada
com a imobilidade dos olhos,
o movimento ininteligível
do ser único, eterno,
a ordem imutável
contra a perpétua mudança,
defendia: enquanto caminhava
ao lado dos seus discípulos
O homem na névoa lembra-se da mãe. “Antigamente os pássaros não voavam”, diz. Dos campos lavrados, diante dos seus olhos, levantam-se pombas,
Depressa o bando se dilui na delicada penumbra humedecida. O homem olha devagar, retém a paisagem. “Antigamente pensava: os pássaros não voam”.