Às vezes, poiso o cavalete na memória e pinto, lentamente, paisagens que andarilhei na infância. A arte, a minha arte, contudo, não é essa: eu trabalho a madeira. Entalho santos, recomponho as tábuas de altares torturados por secreta humidade que prece alguma jamais enxugaria. Mãos mundanas, as minhas mãos, se desgastam no afago do sagrado. Às vezes, poiso o cavalete na memória: procuro geografia remota. Tontice, eu sei. Mas enquanto pinto, recupero um tempo perdido. E, então, vou pelos campos floridos com o José, que arriba à minha aldeia no Verão. Ensino-lhe o nome das árvores e outros segredos que enchem de espanto – ou, talvez, de medo – os meninos da cidade. Certa vez descobrimos, num loureiro, o ninho de melro. Averiguei-o, delicado, com a ponta dos dedos: disse, tem três pedrinhas. Ele espantou-se. Sim, pedrinhas. Se dissesse ovos, as formigas escutavam e depressa ocupariam o segredo. E filhotes de melro, de todas as aves, enquanto privados da liberdade do voo, são sapinhos! Assim, as cobras, que sempre nos estão a ouvir, desinteressam-se da palavra. Numa das jornadas por montes e vales, no mês de Agosto, falei ao José dos perigos da mordedura de licranço: sem cura, sem descanso. Nós, os da aldeia, damos valor à palavra, à sabedoria dos velhos. Sendo assim, licranço que emergisse na claridade via de súbito a irregular fuga truncada pelo fio da sachola – e se sachola não houvesse, pedra sempre se acha a jeito para esfacelar cabeça de réptil. No fim de Agosto, quando as latadas derramam aroma doce de uvas maduras, o meu amigo partia. Eu acompanhava-o até ao desfecho da aldeia, e ele nunca, nunca olhava para trás. Despedia-se, sem se virar para a aldeia num último olhar. Os anos foram escorrendo, guardámos as fisgas, esquecemos o carrinho de rolamentos, começámos a duvidar da sabedoria dos velhos, pelo menos no capítulo da eterna ruindade do licranço. E houve um Verão que o José não apareceu. Nunca mais regressou à aldeia. Anos volvidos, escreveu-me um postal como quem salda a última parte de uma dívida de gratidão. No postal, ele falava-me com entusiasmo da memória de uma aldeia que nunca existiu – nem na terra, nem no fundo do mar, nem para lá das nuvens. Dessa vez, fui eu a ficar deveras espantado com as palavras de gente da cidade. Mas perdi pouco tempo a remoer a memória da aldeia que não existe em parte alguma. Dias volvidos, parti para África, fui à guerra, e o medo, o medo da morte, enfim, humedecia quase todos os meus pensamentos. Lembro-me de ter levado o postal comigo, e a intenção de responder ao meu amigo quando aportasse em terra longínqua e desconhecida. Acabei por nada escrever. Houve então um tempo longo, muito longo, de silêncio, sem notícias do meu amigo. Só quando poisava o cavalete na memória ele aparecia a partilhar o espanto juvenil. Há dias, porém, ao ler o jornal, reencontrei-o subitamente! “Memória de aldeia que nunca existiu” era o título da notícia e o nome da exposição de pintura. Anotei o local, preparei a viagem até ao Porto. A inauguração já havido decorrido: observo devagar, quase sozinho na galeria, o trabalho do meu amigo pintor. E diluo a dúvida que trago desde as distantes férias de Agosto: descubro a razão por que o José, na despedida, nunca voltava o rosto, num derradeiro olhar, na direcção da aldeia: ele levava-a dentro do coração; desse modo, como poderia ter saudades de algo maravilhoso que trazia no seu íntimo? Entro na aldeia-que-nunca-existiu, habitada pela memória do José e das suas personagens: a mulher azul, suave melancolia nos olhos, sustém no colo um galo colorido como se fosse um menino, o filho que um dia partiu. Ergo um pouco o olhar, vejo o homem da bicicleta – militante clandestino, figura saída do poema de Herberto Hélder? –, pedala, o homem pedala, senhor da sua melancolia, pelo domínio dos anjos e outros alados seres sagrados. De regresso à terra chã, observo o comboio a vapor, a entrar no desconhecido. Outro homem em movimento, corre, forquilha apontada: como uma lança ou tridente de gladiador. Que medo acirra esta criatura? Há ainda o pastor, apascenta ovelhas e tristeza, um velho sentado no cadeirão, em plena paisagem: esteve ali a vida toda, à espera do homem que caminha, do homem que regressa à aldeia-que-nunca-existiu. O meu amigo não está na galeria, e eu não pergunto por ele: continua, porfia, como caçador a caça, a aldeia. Uma terra imaginária, tolhida pela nostalgia assim como ficava a minha aldeia depois de Agosto. Digo-vos agora o meu nome: eu chamo-me Gualdim. Não volto a poisar a cavalete na memória. Na minha arte, já o disse, entalho figuras religiosas, componho a madeira de altares feridos pela humidade. Nem o sagrada é capaz de iludir a velhice: mãos mundanas, as minhas, se desgastam devagar. Anotei o endereço da galeria. Quando chegar a casa, prometo, vou responder ao postal que o José me enviou há muitos, muitos anos. Talvez ele até já nem se lembre de mim. Dir-lhe-ei, és o filho inventado da mulher azul, uma personagem de Tonino Guerra, retirada do Livro das Igrejas Abandonadas.
(Para José Emídio, guardador de imaginários)
sexta-feira, 26 de outubro de 2007
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