quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Legar a memória















A mulher atravessa a pequena multidão, a alvura
do cabelo aviva o negro da roupa. A mulher oferece
um ramo de cravos ao secretário-geral do partido,
que acaba de entrar, humilde, no arraial. A banda,
pouco antes havia exumado O Baile da Dona Ester,
solta na noite A Internacional. A mulher regressa,
senta-se: os jornalistas interrogam-lhe o gesto
(por que motivo os jornalistas são tão rigorosos a
confirmar a evidência?). "O meu marido foi preso
duas vezes pela polícia política, tempos de fome e
repressão: é preciso legar a memória". Numa panela
enorme há feijoada; na outra, caldo-verde. Os camaradas
comem, cantam a terra sem amos.
O primeiro prémio da tômbola é uma máquina
de lavar: vejo-a a uma ponta do palco, onde o secretário-
geral, com a mesma humildade que chegou ao pinhal
iluminado, arremessa o fogo da palavra: descreve
o nosso rude tempo - acredita, convicto, na possibilidade
de inverter o curso das coisas. S. Pedro da Cova. Agosto.
Noite de Agosto de dois mil e cinco. A ouvir o secretário-
geral do partido há povo, gente pobre na sua maioria.
A antiga comunidade mineira (Trago a camisa roja/
de vinho que auga não bebo") vê a sua terra tornar-se
subúrbio de cidade de subúrbio. Cruel destino
histórico. Um amigo dá-me boleia até ao Porto, antes
do desfecho da festa. Também ele, pressinto, terá
evitado assistir à anacrónica alegria do vencedor do
electrodoméstico. Um verso, vem um verso em meu
auxílio, Não traio, por que insistes!
Às vezes, um verso,um só verso basta.


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