A nossa casa ficava quase a meio da encosta. Na Primavera, pela tardinha, descíamos ao rio por um trilho de pedra solta, entre estevas e vinhedos. Um dos cântaros iludia a sede da laranjeira; com a outra água a minha mãe fazia a sopa, lavava a louça. A que sobejava era para nosso asseio. Ao cair da noite, eu e a minha mãe sentávamo-nos na soleira a cativar o aroma doce e florido da laranjeira. Eu sei, duvidará da minha história. Todos nós tivemos infância: a minha adormeceu na casa térrea a olhar um rio. O avô, pouco interessa o nome, o meu avô plantou a laranjeira em frente da casa, na terra de xisto, como se deveras quisesse afrontar a natureza. Venceu. Vezes sem conta, no entanto, teve de rumar ao rio, quando o Verão sufoca o murmúrio das fontes. Eu e a minha mãe recebemos e tratámos, zelosas, a herança. Desconheço se a casa resiste, terá telhado, a porta. Qualquer dia, meto-me no comboio e afugento a dúvida. Uma coisa é certa: não a vendi. Se o tempo a diluiu na paisagem, força não teve, nunca terá, para engolir o chão. Um pedaço acanhado de terra, afinal tudo o que me resta. Por que não me olha? O meu corpo... Sim, meto-me no comboio e regresso à memória da casa. Nada temo, ninguém me conhece: a aldeia ficava distante como o rio, ou mais longe. E as pessoas da minha criação, como eu, fugiram da penúria; aos velhos a terra, no devagar secreto, já terá furado e bebido os olhos. Talvez a laranjeira desobedeça à morte, muitos galhos secos, por certo, e uma pequena mancha de verdura – sem viço, contudo, para brotar as mais doces laranjas da minha vida.
Depois de abrir a cova, a golpes de alvião, sabe o que é um alvião?, na terra de pedra desirmanada, o meu avô chamou a filha. Em tom de prece, disse: “S. Frutuoso bote o fruto”. E S. Frutuoso, pelo menos enquanto vivi a olhar o rio, foi benigno, como parecem ser todos os santos da devoção de homens laboriosos. Meto-me no comboio... Por que não olha para mim? Se quiser, de verdade, conhecer a história observe o meu corpo. Muitos homens o percorreram. Homens a tresandarem a álcool, suor; homens perfumados. Bruscos, homens silenciosos como choupos, um ou outro tocado pela delicadeza. Por todos reparti amargura, a todos prestei felicidade. Não. Peço-lhe, pare. Felicidade é palavra tresmalhada na minha história!
Enquanto recua a fita, falo da tristeza dos choupos. Enfim, tontice... Se me via triste, o avô dizia, Pareces um choupo. O meu avô amava o silêncio das árvores, será essa uma das grandezas dos homens justos... Expulsou a felicidade?... Quando o meu avô comparava a minha tristeza ao silêncio dos choupos, eu ficava furiosa, lampejavam os meus olhos como as pedras que o alvião esmiola a rasgar a terra. Sabe o que é um alvião? Para invadir a minha vida, precisa de saber o que é um alvião. Alvião, alvião... conhece, diga-me, conhece outra palavra leve e tão veloz? Eleva-se no ar como libelinha e logo se precipita como cutelo. Você não acredita mesmo. A mulher da minha rês vedado está o ofício de sopesar a língua. Todo o meu vocabulário, imagina, caberá no reverso de um bilhete de comboio. Engana-se. De herança, o meu avô deixou-nos ainda um livro: nunca o abri, mas, se assim o desejar, conto-lhe o enredo. Nas tardes de Primavera, degustava em voz alta, sentado na soleira, essa antiga história de paixão. Quem ouve palavras envoltas no aroma de laranjeira florida jamais as esquece. Lhaneza, sabe o significado de lhaneza? A palavra irrompe nas primeiras páginas do livro; quando a escutei, pedi ao meu avô e ele suspendeu a leitura. Qual o significado da palavra que nos obriga por momentos a colar a ponta da língua ao céu-da-boca? O meu avô... Acabou a fita? Não me esqueço do que ia dizer...
Posso?
O meu avô não soube explicar, e pareceu-me ter ficado ofendido com ele próprio. Nunca mais lhe interrompi a viagem com as palavras...
Por que grava a minha história?
Numa tarde de Verão, desci sozinha pelo trilho de pedra solta, que cruzava estevas ressequidas e a verdura dos vinhedos. A laranjeira clamava por água. Um homem, de súbito um homem, na vinha, mete a mão ao bolso e mostra moedas. Deixei-o com o brilho na concha da mão, segui caminho. No rio, demorei mais do que o costume, talvez a espera o afugentasse. Devagar subi a encosta, cântaro de barro na cabeça, você não é do tempo dos cântaros de barro, e o desassossego, conhece palavra mais sinuosa, desvanecia à medida que a vinha fugia em cardume para o rio. Já avisto as estevas, mirradas, refúgio de perdizes e víboras... mãos de silêncio e lume acanham-me os seios. Ao contrário das víboras, ataca-me por detrás, à falsa fé como dizia o meu avô, e eu tenho as minhas mãos a aparar o cântaro. O homem grudado a mim, vou descendo a vasilha; sem me descativar, permite que me curve e poise o cântaro na terra. A mão esquerda solta o seio, este, este!... por que não me olha? e tapa-me a boca, mas alguns gritos haviam já golpeado a brandura da tarde.
Valerá a pena, a dor, contar o resto?
O alvião, enfim, fica a saber o que é um alvião. Vi-o no ar, gume de ferrugem (depois da morte do avô ninguém mais lhe dera uso), e logo a descida fatal.
Um dia meto-me no comboio. Compro uma tesoura de poda, corto os galhos mortos da laranjeira. E desço ao rio, desta vez sem o cântaro, sem o olhar predador a espiar-me da vinha... O fotógrafo? Pois, amanhã, já me tinha dito. Avise-o: quero a fotografia assim. Não me acha uma mulher formosa! Olhe as minhas pernas, a mão no sexo... O corpo. A minha história. Desligue o gravador, desligue: deite-se a meu lado, tímido amante. Eu voltarei a ser menina, cântaro à cabeça, pelos vinhedos a caminho do rio. Poise as mãos de silêncio e lume nos meus seios. Não tenha medo, não tenha medo de mim – alvião é palavra perdida.
(in Putas, antologia do novo conto português e brasileiro; Quasi, 2ª edição)
sábado, 29 de setembro de 2007
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