sábado, 20 de outubro de 2007

Primeiras chuvas

O homem atravessa as primeiras chuvas, o silvo da ventania. Despojado. Sente as mãos entorpecidas, inúteis, como as mãos de pescador da água doce submerso nas chuvas de Março. Do interior das botas debanda um ruído de água impura. O rapaz e a mulher (ainda jovem), emudecido colóquio de melancolia, guardam o morto. A porta da capela quase fechada, só uma fresta alicia claridade breve e encurrala o frio. Em redor do esquife, cerrado, apto a navegar por dentro da terra, nem flores nem odor a círio aceso. O rapaz, apenas a mulher e o rapaz. Furaram a noite ali, anteviram, no gume do vento, o dia turvo e despovoado. Chuva, depois a chuva, agreste. Chuva de Dezembro: condena os vivos, condena os vivos até aos ossos.
Fossem outras as circunstâncias, beberiam aguardente nova sobre o jejum natural, sem mastigo apressado de pão milho por via de desembravecer a labareda interior. Ou vinho, desse vinho azedado que a bondade dos senhores concedia pela alva aos moços de servir. Fossem outras as circunstâncias, ali não: por resguardo da alma prisioneira do finado. Libar vinho no templo (figuração branca do sangue de Cristo) é graça apenas dos artífices do divino. Peleja corajosa, sem dúvida, a da mulher e a do rapaz contra o frio – anuir ao desconforto seria agora apoucar a mágoa, tingir o luto.
O homem entra no templo. A mesma folga na porta. A bainha de luz e frio acha a parede lateral e por aí definha, fronteira oblíqua: separa quem entra da essa, da santidade que a penumbra invalida. Num passo pantanoso, pisa o traço de claridade. A mulher levanta o rosto: olhos de submissa chama alumiam o viandante, desde muito longe – desde a infância, talvez. Comove-se. Dá um passo em frente, estende o braço, mão aberta, mas o homem sela a saudação com um beijo.
Só eu guardo os mortos abandonados,
diz a mulher.
O homem olha o rapaz, persevera o frio e o olhar cabisbaixos,
É o filho,
diz a mulher.
Comove-se. No rosto, aparentemente jovem, esquiam duas lágrimas velozes [Cessa aqui o ofício do narrador que agora me parece, além de infeliz nas imagens, desapiedado]. Comovo-me, devastado pelo silêncio do rapaz. Lembro (num sussurro que a penumbra instiga) à mulher,
As chuvas do Inverno flagelam os vivos.
Num tom ciciado, que a presença do rapaz reivindica, ela anuncia,
Beber muito cansa a alma. Deforma o corpo.
A que horas é o funeral,
pergunto.
Depois do outro enterro,
diz a mulher.
Estendo um cigarro à tristeza do moço, ofereço outro, já aceso, à mulher. Emudecidos, fumamos emudecidos em redor do morto: abrigado da luz da manhã, o morto, como se quisesse dormir até mais tarde. Talvez o fumo o aborreça. O rapaz transpõe a fronteira: joga a beata na chuva pela fresta breve da porta. Pressente a manhã desabitada,
Está frio,
murmura.
Eu e a mulher deixamos cair as pontas de cigarro na humidade suja dos ladrilhos, rente ao esquife. Quando éramos crianças, a capela tinha soalho. Pouco antes das novenas de Maio, mês de Maria, a zeladora do templo passava um pano molhado e sabão amarelo nas tábuas de castanho. Depois, sempre de joelhos, esfregava ao soalho com escova de piaçaba. Adivinhávamos o árduo desvelo pelo cheiro do sabão amarelo – a zeladora, viúva temporã, trancava a porta a olhares impúdicos.
Sem flores a bordejar o esquife, a morte parece mais aceitável.
Esquife… esquife,
silva o rapaz, a devassar a minha palavra.
É o barco do teu pai,
diz a mulher.
Não sou filho de toupeira…
Pobre diálogo e pobre, me parece, continuaria. Pés encharcados, a roupa molhada: aguardente, preciso de aguardente e continuar os caminhos de ninguém. Por uma só vez, digo, passei em Vilar de Amargo, à procura do meu amor da Guarda. Subi os montes em redor: e o que lá vi? A pedra maneirinha dos muros a emigrar. Fatal navegação à vista.

1 comentário:

Unknown disse...

Outonal, intimista e nórdico.

E de nórdico escritor convido-te a comentar: «A pena é uma forma distinta de desprezo».

Beijo,

Margarida