sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os homens de talabarte


















No tempo dos lírios, eles sobem aos montes, levam bornal, em bandoleira, cheio de laranjas e hortelã. Quando o peixe se afoita na correnteza das águas, descem às terras aluviais rente ao rio. Um lugar de gente feliz, disseram: caminha por veredas antigas, limpas pelo melhor buril que é o uso. No defeso de passear pelos montes e prender giesta branca no talabarte, e não sendo época da desova dos barbos, é Inverno: os homens andam em redor do povo. Durante os rigores do estio porfiam a mesma navegação sob a alva. Repousam, à tarde, debaixo das figueiras. E quem sabe ler, lê como se falasse sozinho. Os que não ajuntam o rebanho das letras ouvem, ao lado das crianças, enternecidos, o mistério dos livros profanos. Terminada a leitura, já o sol se afigura manso, passam pela fonte. Bebem, as mãos em concha alaga-os de frescura. No lugar onde os homens andam a pé, o último sacerdote sublinhou fiel atormentado num incunábulo, interdito a leigos, e desatou a correr para o coração dos montes. Uma picada de víbora, não era tempo de açucenas, trava-lhe a jornada que parecia sem fim. De boa mente, os homens espremeram meia laranja azeda na zona da mordedura, por via da ruindade não alastrar à alma, e deram sepultura ao corpo. Durante a noite, emparedam as portas do templo com tijolo burro – a grande e a lateral, mais económica de uma só folha grossa de carvalho francês. E abjuram o conserto do vidro que o derradeiro eclesiástico estilhaçara num imoderado arremesso de pedras às andorinhas. Aferiam no santo beiral o sítio justo para o ninho, mas a tempestade de pedras, silvavam como cobra sitiada, irrompeu desmedida: as longínquas aves alaram. No ano seguinte, porém, depressa a fresta no vitral foi convite a habitar o sagrado.
Por entre as neblinas primeiras de Outono, despediram-se de novo da igreja, num voo silencioso e comovido. Disseram, “as andorinhas quando voam rente ao céu, e fazem-no nos dias luminosos, incorporam as almas”. Rompeu a Primavera na frágil brancura das cerejeiras, o bando também e havia crescido: barro e mais lama desaguam na solidão do templo. Laborioso movimento, leve e expedito, maravilhava os homens: viam agora as andorinhas como se fossem a alma alada e veloz de antepassados. Almas enamoradas, acasalavam para subtrair ao limbo outras almas à deriva, longe da luz, longe do mundo dos vivos. A partir de certa altura, um dia por semana, a caminhada perecia no adro. Houve quem exigisse a reabertura das portas, no estado em que se achava a igreja impiedade seria chamar-lhe Casa de Deus. Que é alvura, que é a Luz. E esse argumento viaja na carta, chega à mão desapaixonada do secretário do bispo, no distante paço episcopal. Os portadores da epístola, dois homens maduros, gastaram sete dias, em passo ledo e harmonioso, até topar o destino. E três dias aguardaram, a água e silêncio, sem dormir, pela graça do prelado, que pressentiam feliz. Recebeu-os sentado, escusou estender a mão, não quis levantar os olhos; escrevia numa folha timbrada, resguarda o escrito no envelope onde os homens vêem tombar uma roxa lágrima de lacre – e logo o anel lhe dá forma circular, marca pessoal.
Quando o secretário o avisou da partida dos romeiros, levantou-se e devagar, engenho de bispo a conferir solenidade à marcha, abeira-se da janela. Ainda vê, no fundo da rua, os talabartes floridos. Espanta-se! A elegância, ritmo, a leveza dos caminhantes… “Povo selvagem”, comenta para si, no momento em que os perde da vista.

A um dos profanos leitores estivais cabe a missão de revelar a resposta. Estava escrito o seguinte na folha timbrada: “Quem me ama, guardará as minhas palavras”. Nada mais o bispo grafou além da breve frase alheia, por isso cativa pelas aspas. De que livro havia emigrado o pequeno bando de vocábulos? Dos evangelhos, talvez, mas seria empresa desprezível, e deveras imóvel, passar a pente ralo os evangelhos à cata da palavra e do seu contexto. E se a citação fora colhida em livro apócrifo? Os livros sagrados escassíssimo interesse atiçam no lugar onde as pessoas andam a pé. A dúvida terá o mesmo número de devotos. Expeditos, acham resposta para tudo. Respostas quase sempre inverosímeis mas o certo é que a dúvida foge como animal bravio. O leitor da missiva, ele próprio, como se fosse experiente arboricultor da língua, desrama a mensagem. “O bispo diz que a palavra do Senhor está na igreja. É preciso libertá-la, dar-lhe de beber a luz: pô-la como um selo no coração”.
Um a um, com desvelo de artefacto da dinastia Ming, apearam o tijolo burro que sequestrava o verbo divino. Quando a luz diurna, morna mão macia, afagou de novo as portas: a madeira retraiu-se da carícia e arremessa um estalido, a lembrar gelo pisado sobre a manhã de Janeiro, e se levanta nuvem de pó, e ouve-se a fechadura a cair estrepitosa, desamparada, no lajedo da soleira, e pouco depois o tilintar de pregos e outras esquírolas de metal. Vagarosa, a porta grande, pó, finíssimo pó cor de chocolate, suja a claridade. Melancolia corrosiva, disseram, é a ausência de luz. Explicar as coisas pela metáfora parece ser o melhor caminho na terra onde as pessoas andam a pé. Juntos com a luz limpa, os homens reentram no templo abandonado: a brusca visão dos santos, alvejados pela claridade, assombra-os! Para muitos era a primeira visita à Igreja, e de igual modo esses, falhos da palavra de Deus, mostram sentida inquietação. Os santos, disseram, perdem o rosto no instante em que renegam o martírio. Esta observação, como se tivera fogo, impele a marcha – depressa o adro e a igreja quedam vazios de gente.
Os homens no tempo da desova dos barbos não usavam os talabartes. Quando voltaram do rio, trouxeram um seixo afeiçoado e uma braçada de perrexil. E deram o seixo a lamber a vaca prenha, depois o enterraram no vergel mais árido do lugar: assim haverá água na fonte e nos campos, têm as chuvas os seus tempos plausíveis. A salsa brava mergulha na água com um fio de azeite cru, numa caldeira de cobre, e havia de ferver três dias e três noites. Nas quatro noites seguintes ficaria em repouso, coberta por manta de burel. A partir do sétimo dia, os mais velhos do lugar onde as pessoas andam a pé, se a fadiga lhes tolhia a marcha, beberiam uma concha desse chá e o enfado abalava. Os rios, disseram, perpétuos viageiros desprezam a memória porque imunizam o ímpeto da juvenilidade. E foi desprovidos de talabartes que os homens volveram à igreja, como se desejassem confirmar o assombro. As andorinhas estavam também de volta aos ninhos, havia-os no tecto, colados aos frescos bíblicos, havia-os nas paredes e no altar. Aí, no altar, surgiam apostos ao rosto dos santos, humanizados pela vida que se gerava nas suas cabeças. As imagens viveram paraíso onde as almas repousam e se multiplicam. E o S. Manuel! Só ao mártir S. Manuel consentiram o rosto, o ninho acomodava-se entre as flechas que trespassam o franciscano morto em Damasco. Para este fenómeno a explicação não surge com a simplicidade habitual no lugar onde as pessoas andam a pé. Ficam inquietos os homens, abandonam apressados a igreja e o frenesi das andorinhas a restaurar os abrigos. Pela tarde, encetam a caminhada: trazem os talabartes, embora seja tempo de defeso das giestas floridas. Como se temessem investida externa, o tijolo burro, desta vez na companhia fiel do cimento, empareda as portas do templo. E assim a penumbra, em silêncio, repasta o martírio do padroeiro dos viandantes da cristandade.
Posto o último tijolo, os homens beberam o chá de perrexil na concha marinha. Antes da andança pelas colinas e os montes, chega um homem, muito gasto da andadura. Ele traz uma carta, e ele próprio, depois de beber uma pouca de água, a lê no adro, sem olhar o auditório, como se falasse sozinho: “Esta igreja só reabrirá ao culto se as andorinhas que a habitam forem descendentes das andorinhas que emudeceram em obediência à palavra de S. Francisco”. Quem ordena tamanha crueldade? Indagam os homens de talabarte. Mas pregador gasto pela digressão, homem do longe, por modo de abreviar a bagagem, só trouxera mesmo aquelas palavras.
Dobra devagar a carta, deixa um gesto desapaixonado na despedida.

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