terça-feira, 6 de novembro de 2007

Água do mar

Leva-me a Busteliberne?
O homem do carro de praça espanta-se. Vistoria, em silêncio, o imprevisto cliente. Barba a monte, um pouco abandonado no vestir, o saco. Que ocultará o vadio no saco? Encostado ao automóvel, na sombra do plátano, hesita. O passageiro imprevisto ilude a impaciência. Abre o saco, demora a achar o tabaco, retira e a seguir devolve o conteúdo: livros, um caderno de capa dura, um lápis, Viarco nº 2, afiado... Então, Busteliberne!, diz, bem alto, para o colega (dormita no outro carro de praça) ouvir. Abre a porta, ocupa o lugar. O homem do saco de cabedal circunda o automóvel, senta-se ao lado do motorista.
A estrada civilizada, pouco demorou, fica para trás. Agora é de terra batida, rasgões evidentes talhados pela cegueira das chuvas. Lenta, lenta e penosa a marcha no coração da serra. Das bermas, uma multidão de giestas curva-se em vénia florida. Quatro ou cinco quilómetros galgados, nem uma palavra. Aqui e além, o motorista tosse, como se afinasse a garganta para o arremesso da pergunta. O homem do saco olha em frente, às vezes vira o rosto e segue a imagem pela janela do seu lado, como caçador, arma apontada, a riscar trajectória de perdiz. Ele sabe, a pergunta surgirá antes do olhar atingir a aldeia,
Se quiser, pode fumar.
Ei-lo a arrotear o silêncio. O homem do saco de cabedal, por certo, vai agradecer,
Obrigado.
Caiu na cilada. A pergunta vem a seguir, um humilde vai desculpar-me no início. Vai desculpar-me o atrevimento: alguma vez esteve em Busteliberne? O passageiro olha-o com um sorriso. Não, nunca estive. Do saco retira o tabaco; o outro desce, enquanto fala, é uma aldeia quase morta, o vidro da janela. Só a Deus falta a companhia de dois ou três velhos... e declina de vez! O homem do saco diz, o topónimo é bonito. Como? Antes de entrar na vila, vi o nome da aldeia numa placa. E subitamente Busteliberne é a minha terra. Como se, há muitos anos, eu tivesse partido: sem virar o rosto, no olhar derradeiro. Não o entendo, diz o motorista. Passagem bíblica, meu amigo.

Ainda estamos longe?
O homem do carro de praça emudece. Mesmo ao lado tem um desconhecido, barba a monte, desleixado no vestir, o saco, que esconde o saco além dos livros? Na aldeia havia três ou quatro velhos, até os distinguia pelo nome, mas já morreram, e se vivos fossem demasiado gastos seriam para o ajudar a deter o gandulo… a estrada, apertada, a estrada não permite brusca inversão de marcha,
A minha única arma é um lápis afiado.
Vai desculpar-me... é que o senhor parece…
Quer um cigarro dos meus?
A aldeia, povo breve, em frente dos dois homens. Pare. Por favor, pare aqui. Quero regressar pelos meus próprios pés! Quanto lhe devo?
Paga. Estende mão amistosa ao motorista.







Crepita a água pelos regos. Água, muita água, como se fosse o perfeito idioma do abandono. O homem suspende o gesto, relê: perfeito idioma. Rasura o que acaba de ler. Escreve, como se fosse voz cristalina do abandono. Pela escrita suaviza o infortúnio do mundo, pensa o homem do saco. E quem sou eu, silencioso cronista, para lhe alarmar o sonho? Ele fecha o caderno de capa dura, acomoda-o no saco de cabedal, volta-se na direcção da serra, à procura do carro de aluguer. Nada vê, nem o automóvel, nem a nuvem de poeira que por certo levantaria. Um absoluto silêncio apenas, que a voz derradeira da água não apaga – nunca saberá diluir.
O motorista aproxima-se. Desgastado. Como se tivesse esquecido a arte de andarilho por caminhos velhos. Senhor, peço desculpa. Não o podia deixar sozinho: quem o levaria à vila? Não, não pense mal de mim, a viagem de regresso é por minha conta. O homem do saco de cabedal diz,
Já não há lobos na serra.
Nem almas nesta aldeia, senhor. O último habitante morreu no Inverno do ano que passou, foi encontrado por caçadores, na soleira da porta, hirto pela geada.
Afinal, a Deus nada falta.
Sim, não contei a verdade toda… para o apartar do fim do mundo.
Como se chamava esse homem que o frio soube cingir?
Era uma mulher, senhor. Chamava-se Ludovina. A todos os que por aqui passassem, ela fazia um pedido: se um dia voltassem, lhe trouxessem água do mar. Um garrafão de água do mar!

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