sábado, 17 de novembro de 2007

A morte sobre a manhã




















Sobre a manhã, «ouviram um ladrar anormal dos cães». Descem ao quintal, acham refúgio num palheiro próximo. Minutos volvidos, os primeiros silvos de balas trespassam o frio de Dezembro na aldeia de Cambedo, perto de Chaves. O cerco. Ténues esperanças restam aos guerrilheiros antifranquistas. Homens acossados, conhecedores dos montes e de escusos atalhos, não renegam a luta. Resistem. Um dia, uma noite, até à tardinha do dia seguinte.
Os outros têm morteiros e bombas incendiárias, são muitos. Eles são apenas dois. O terceiro guerrilheiro foi abatido sobre a manhã – não quis, num gesto de dignidade, comprometer quem lhe havia dado guarida. Chamava-se Juan Salgado, gaiteiro na juventude, contrabandista. Guerrilheiro porque tinha arte de atirador (“onde punha os olhos metia a bala”) e, do outro lado da raia seca, esperava-o o cárcere. Ou, o mais provável, uma bala para lhe esfacelar a cabeça. Destino, afinal, reservado a quem afrontou o sanguinário caudilho.
Sobre a manhã, Juan fura o cerco, abre caminho com rajadas em forma de leque. O destino é fronteira, ali a escassos quilómetros. Dessa vez, porém, a montaria aos rojos envolve forças dos dois países. Na linha imaginária que divide nacionalidades, um cordão de carabineiros acolhe o compatriota desavindo com a palavra das armas. Ferido, volve ao refúgio de Cambedo, em busca dos camaradas. Um cabo da GNR trava-lhe a caminhada sôfrega, dolorida. “Foi morto pelas costas».
No estertor do lendário homem de guerrilha (“malfeitor”, “bandoleiro”, segundo as autoridades salazaristas), já os morteiros espalham o terror na aldeia raiana: ainda sobre a manhã, o povo, assustado, foge para a parte alta dão lugar. Ficam dois homens, dois homens apenas. Demétrio Garcia Alvarez (na foto) e Bernardino Garcia. A fenda numa parede, provocada pelo bombardeamento, permite-lhes entrar em casa amiga. Na adega, encurralados, rebatem os assaltantes. Adiam a morte.
Agora, manhã limpa, chega a trégua breve. As “forças públicas” iniciam a revista às casas de Manuel Bárcia e de Albertina Tiago. É nesta última que os guerrilheiros se escondem, atrás do velho lagar. Dois soldados da GNR são mortos, fica ferido um agente da Pide. Intensifica-se o tiroteio até aos primeiros assomos de escuridão. A noite, a noite ansiada por Demétrio e Garcia para tentarem a fuga. Em vão. As “forças públicas” incendeiam palheiros: o clarão das chamas depressa os demove da aventura.
Pela noite e sobre a manhã do dia seguinte falam ainda as armas. “Á tardinha”, lembra Aurora Gonçalves, Demétrio, sem munições. rende-se. Ou talvez fosse insuportável estar vivo ao lado do companheiro morto. Bernardino Garcia, ex-capitão do exército leal à Frente Popular, guardou a última bala para si. Preferiu a morte à tortura, à terrível angústia de ser forçado a contar segredos da guerrilha. A versão oficial é outra. Garcia “foi abatido pelas forças públicas”. E o cadáver exibido como trofeu de caça... que todos observem, toquem, o animal feroz. Na altura do massacre, Carlos Lopes tinha sete anos. Hoje ainda se lembra de Garcia, estendido, regelado, no cemitério de Cambedo. “Era um homem forte”. Mas o que guarda na memória, com nitidez, é a imagem das botas do guerrilheiro: “Um luxo, de cano alto, a bem dizer novas!»
Ary Pires era o barbeiro da guerrilha. “Cheguei a fazer a barba mais de uma dúzia deles”. No monte, duas vezes por semana: à quarta e ao domingo. “Pagavam-me bem”. Na madrugada do cerco, Ary é detido na fronteira, com contrabando, pelos guardas espanhóis. Trazem-no às autoridades portuguesas. Próximo do povoado, Ary ouve os primeiros tiros. Depressa adivinha a tragédia. “Vinha o dia a romper”, por entre os arbustos vislumbra Juan já em fuga, na direcção da fronteira. “Foi meter-se na boca do lobo, e eu nada podia fazer”. Vê pela última vez o guerrilheiro, agora já ferido, no regresso a Cambedo: “Andava uns metros, voltava-se de repente e despejava uma rajada”. Ary aponta como o dedo para o fundo do pinhal, “mataram-no ali”. Pelas costas? “Isso não sei. A GNR o ali o Juan, tenho a certeza». Antes do assalto final, os guerrilheiros «andavam tranquilos da vida: trabalhavam para os vizinhos, comiam e bebiam nas adegas do povo. Mas a vida é assim”.
O cerco a Cambedo, no dia 20 de Dezembro de 1946, marca o fim da guerrilha antifranquista, com base de apoio na raia portuguesa. Um erro político dos maquis conjugado com a acção da Pide deram o golpe final nos rebeldes. Em Setembro daquele ano, o grupo de Juan Salgado ajusta contas com o cacique Sousa Pinto, da aldeia de Negrões, Montalegre. Este acto de retaliação causa três mortes. Sousa Pinto havia denunciado um refugiado, que hospedou em sua casa:. devolvido às autoridades espanholas, foi fuzilado mal transpôs a fronteira.
Demétrio Garcia Alvarez, perante os juízes do Tribunal Militar do Porto, reconhece o erro do assalto em Negrões, atribuído ao grupo de Juan. O acto, no entanto, carecia de autorização da Federação de Guerrilhas galegas. Após os acontecimentos de Negrões, as autoridades salazaristas reforçam a campanha contra os “bandoleiros armados”. Era, pois, altura de alarmar as populações do “perigo” que corriam ao apoiar essa gente. Para reforçar a ideia de terror, a Pide e agentes espanhóis encenam um assalto à carreira Braga-Chaves, no último dia de Outubro de 1946. Não houve mortes, mas os passageiros vêem-se desapossados dos seus bens. No dia seguinte, os jornais falam de mais um atentado da “matilha do Juan”.
Estava criado o ambiente para o golpe na aldeia do Cambedo, nas vésperas do Natal. Desmantelada a guerrilha, dezenas de portugueses são condenados pelo crime de serem solidários. As marcas da brutalidade do assalto ainda são visíveis na aldeia raiana. Uma das casas derrubadas a tiro de morteiro continua em ruínas: para que ninguém esqueça a barbárie fascista. Ao lado, sobre uma varanda de madeira, um solitário cravo vermelho debruça-se na ruína. Imagem de liberdade, numa manhã de Dezembro – distante, tão distante do «ladrar anormal dos cães».

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