segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Pena de gaio, vermelha

Há uma maneira muito simples de pescar trutas. No hipermercado, seguir até à peixaria: sobre o gelo, o indefeso cardume. Trutas, reparará, do mesmo tamanho. Brilham como se tivessem escamas de prata. Salmonada, truta arco-íris, recusa as águas frias de rio de montanha. Truta de viveiro, cevada ao ritmo célere da nossa sociedade. Não é dessa espécie, em franca expansão, que gostaria de falar. Trutas, para mim, só as de pinta vermelha: e essas jamais encontrará em imóvel cardume. Para iludir uma dúzia de palmeiras (as trutas medem-se aos palmos), é preciso bater muito rio, desde o cantar do pisco até ao sol projectar a nossa sombra na água limpa: tempo de trégua, de pousar a cana até ao declínio do dia. Grande empresa pôr em prática a receita que atrás sugeri. Se não é do mister, mais difícil se afigura a tarefa. Explico: a mãe de todas as coisas, a experiência, se convoca também para se obter sucedimento na antiga arte de iludir o peixe belíssimo, arguto. Arredio. Um simples gesto, passo desmedido, e a truta, em busca aflita de refúgio, some-se da vista. Vamos com calma. Tirando uns infelizes meninos sobredotados, conhece alguém que tenha nascido ensinado? Pode parecer cometimento arrojado, mas a pesca à linha é por vezesfrágil ofício poético. Somos só nós e o silêncio predador por dentro de Maio, na verdura tenra e húmida da manhã. O rio, o rio limpo, por cúmplice companhia. Lança-se a amostra, nº1, “pena de gaio”, vermelha, sem assustar a água, rente à outra margem: e logo o carreto a faz girar, fulgir, corrupio de encantamento: como surdisse do nada, de lugar nenhum, desfere o golpe ao intruso que lhe viola os domínios! A mais bela espécie da água doce, zelosa do seu espaço de caça, assim cativa a vida: atrás do brilho provocador, a fateixa! Faltam-nos onze palmeiras para compor a dúzia. Agora dê-se aconchego merecido à nossa truta: atapete-se, de ervas e folhas de hortelã, o cacifo de vime. Um cigarro, depois, longe do mundo e suas maleitas, enquanto se navega pela paisagem.
Da próxima vez (ficou devoto, pressinto), por certo, perderá menos amostras nos ramos dos salgueiros, nos musgos do fundo do leito. Da próxima vez, conhecerá alguns dos segredos do rio, o caminho para ludibriar as silvas, outro rigor no gesto ao lançar a “pena de gaio” sem ser visto pela presa. O provérbio é antigo, “não se pescam trutas a bragas enxutas”. Mas regressar a casa com o cacifo cheio de hortelã brava não deslustra: há o dia da poesia, há o dia do predador.

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Truta moleira
(Para quatro pessoas)

Doze trutas de pinta vermelha, tamanho não superior a um palmo, de preferência cozinhadas no dia da captura.Limpas e enxutas, temperar com sal grosso. Envolver depois em farinha de milho. Frigir em azeite muito quente. Batata nova (pequena), cozida, acompanha as nossas trutas: chegam à mesa em travessa decorada com folhas de hortelã. A hortelã verde devolve um travo de rebeldia perdida. Evitar o limão.
Completar o prato com uma salada de agriões.
Bebida: branco, se possível, da Quinta de Tormes.
Tangerinas à sobremesa.
Por último, a entrada: fatias de presunto e broa de milho.
A melhor época para saborear truta do rio é entre Março e Maio.
No final do repasto, se é crente, pedir ao Senhor que continue a dar graças aos silenciosos pescadores da água doce.

(Publicado no livro Receitas dos Nossos Amigos e Outros, editado recentemente pela Coop. Árvore)

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