quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O rapaz do lírio

Senta-se na sombra dos choupos. As raparigas diluem Agosto, ardente, no rio. O rapaz sobe à coroa do amieiro. Tudo cessa para o ver, destemido, a declinar a cabeça contra o peito, como ave em busca do sono, a estender os braços, retesados, cegos: a todo o instante, o golpe preciso, exacto, na limpidez da água. O homem do saco de cabedal leva o olhar ao encontro do mergulhador. Indeciso, agora indeciso, no ramo mais alto, adia o gesto, o arrojo, a glória efémera. Uma brisa suave fez bulir as folhas, desinquieta o leve voo das libelinhas, penteia a verdura dos milheirais em redor. O rapaz recolhe devagar os braços, levanta a cabeça. Desce. Sem olhar o rio, desce. O seu silêncio é uma arma branca, gume afiado, degola folhas, os ramos tenros do amieiro.
As raparigas voltam à água, ao riso, desinteressadas da secreta amargura do rapaz. Do mergulhador enamorado, que desaparece por entre as canas do milho, a roupa debaixo do braço; momentos depois regressa vestido. Parte. Nenhuma, e nenhuma rapariga o segue pelos olhos. O homem abre o livro. Adormece, pouco depois, na sombra húmida dos choupos.



O homem do saco de cabedal assiste aos preparativos da festa, no largo. Em Agosto, no mais remoto lugarejo há sempre bocas de altifalantes na copa de árvore inatingível. Ou, se a igreja tiver torre, daí desponta a música. Veio a noite e a noite trouxe a dança. O mergulhador enamorado aproxima-se, traz um lírio na mão, um sorriso nos lábios. Da porta do café, o homem perscruta-lhe o movimento – o passo tímido, coração inquieto. A dança acaba, outra dança se inicia. E o rapaz caminha, caminha por dentro da alegria dos outros. Que paixão esconde atrás do lírio? Detém-se. Olha ao redor, como se fosse um estranho. O homem do saco de cabedal entra no barulho do café, ilude o labirinto de homens que amarfanha o balcão, pede aguardente: um cálice de aguardente, por favor. A mulher detém-se. O seu espanto parece eterno, o homem repete, aguardente, por favor. E estende a nota, não o fossem pensar um louco sem dinheiro. Enche o cálice,
Café?
Obrigado,a aguardente basta.
Enquanto recolhe o troco, diz: Agosto é o primeiro mês do Inverno. Boa noite. Abandona o balcão e o olhar violento dos homens.
De novo no largo, agora mais amplo, despovoado. Olha o relógio, passa da meia-noite, a temível fronteira que afugenta os rurais. Os do café começam a sair, devagar a noite passaja a dignidade da acalmia.
O homem irresoluto, no meio do largo. Regressa ao café, a televisão adormecida; a mulher varre saquetas de açúcar vazias, pontas de cigarro, tampas de refrigerantes que, na curta viagem, riscam o silêncio. A mulher suspende o gesto, encosta a vassoura ao peito. O meu avô também dizia que o Inverno rompe no primeiro dia de Agosto. A sabedoria dos velhos, pensava, só a eles pertencia. O homem do saco de cabedal olha-a (de repente se fez bonita, como a mulher de uma canção da sua juventude). Ela pousa a vassoura, enche dois cálices de aguardente. Bebem de um trago só.
Que secreta paixão esconde o rapaz atrás do lírio?
O homem ingressa na noite, atravessa o largo, depois uma ruela estreita, calceta irregular, sob um arco de latidos. No desfecho da aldeia, no ponto mais escuro da noite, acende um cigarro.

Sem comentários: