Conheço Bento da Cruz há mais de vinte anos. Neste espaço de tempo, ele abeirou-se da idade madura, eu afastei-me da juventude. O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, deixa marca por onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior deste escritor, avesso à efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o silêncio. Bento da Cruz é um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra singular e perdurará nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que ninguém, Bento da Cruz trata a memória como matéria perecível. E na memória há palavras privadas de afecto. Isto é: precisam de respirar na página, porque o nosso célere quotidiano padronizado as esquece – e palavra esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra literária do autor de O Lobo Guerrilheiro é, sem dúvida, um abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao silêncio final – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – é uma das dádivas deste escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) surge como outro dos contributos de Bento da Cruz para a Literatura portuguesa. É a fala mais genuína do povo, um povo concreto – marcado pela miséria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste. Um povo, no entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A solidariedade dos humildes é a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz preservam essa memória (matéria perecível) do povo do Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo do Barroso que soube acolher os fugidos, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. A memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, emerge como outro dos legados de Bento da Cruz aos homens do nosso tempo e às gerações do futuro. Uma mão chega para contar os escritores que, antes de Bento da Cruz, ousaram atear esse passado sangrento. Mas o autor de O Retábulo das Virgens Loucas não teme a memória, ele conheceu guerrilheiros rojos e outros fugidos. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários tolhidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz evoca a Guerra de Espanha e traz à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar às autoridades a presença de bandoleiros (as autoridades portuguesas designavam assim os refugiados de Espanha) era crime. E houve, por muitas aldeias do Barroso, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, o pão e o vinho a esses homens transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heróica dignidade das gentes do Barroso, nas décadas de trinta e quarenta do Século XX, Bento da Cruz enobrece todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade da sua obra: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos não têm fronteiras. Bento da Cruz é um escritor do Barroso, um grande escritor português.
(texto lido na homenagem ao escritor, no seu 80º aniversário,em Montalegre)
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
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