domingo, 25 de maio de 2008

O diabo no meio da gente

Chamam-lhe “lavoura dos cães”. Homens e mulheres mascarados percorrem a aldeia a festejar o fim do ciclo agrícola. O diabo, que anda à solta, irrompe dos milheirais: espalha a desordem. Inesperado carnaval em pleno mês de Agosto.

O demo, em figura de gente, saiu à rua. Raptou raparigas, espavoriu o manso rebanho de Deus. São Bartolomeu, estava por perto, prendeu-o a cadeado como fosse cão insubmisso. As moças respiraram alívio. Por pouco tempo. Nem qualquer coleira detém o poder do demónio.

Engana-se, leitor. Não é uma história fantástica. Nós tocámos o diabo. E vimos dois cães enormes a puxar um arado, e as cabras a arrastar uma grade às avessas. A cena integra ainda homens mascarados: trazem enxadas, engaços, forquilhas. Cortejo grotesco do povo de São Bartolomeu do Rego, Celorico de Basto, a assinalar o fim do ciclo agrícola. Depois do caos, a terra repousará em silêncio até à Primavera.

São Bartolomeu dá o nome à aldeia. Todos os anos, no dia 24 de Agosto, o povo louva o padroeiro. A imagem do santo, com o maligno acorrentado aos pés, sobe ao andor. Sai a procissão, passo vagaroso: o peso do sagrado e os fios eléctricos perturbam a caminhada. Duas horas volvidas, os foguetes anunciam o regresso do padroeiro à igreja. Acaba a parte religiosa. O pároco, por via de equívocos, recolhe a casa. Mas a festa continua. Um cortejo pagão calcorreará o mesmo espaço por onde passou o sagrado. Os quatro ou cinco mil fiéis esperam agora o diabo. Ele irá lançar a desordem na canhestra “lavoura dos cães”. O desfile sai ao pôr-do-sol. Ouvem-se os tambores.

Dois homens a cavalo surdem, abrem caminho na multidão. Vêem-se os primeiros mascarados: um padre, um barbeiro, os noivos; depois, esfarrapados camponeses batem com os utensílios agrícolas na terra dura do caminho e lançam sementes sobre o público. O arado puxado por dois cães aparece, conduzido por um mascarado. Outro homem com o rosto atrás da máscara segura as rabiças, que são dois cornos de bode. Como no ciclo da lavra, a seguir ao arado vem a grade. Mas ao avesso, puxada por um casal de cabras: aturdidas, como os cães, no meio da algazarra. Entretanto, o padre, na frente do cortejo, benze os espectadores, ao longo o caminho, com uma brocha que mergulha num balde de água suja (“misturada com urina”, suspeitam alguns dos benzidos). Outro dos mascarados traz um velho sulfatador e, tal como o padre, borrifa o público. De igual modo, cabras participam na benzedura: quem as acompanha, a espaços, faz parar o cortejo para as mungir: vira as tetas na direcção do povo, e, de súbito, o jacto de leite atinge os mais distraídos.

Na ruidosa confusão, caminha São Bartolomeu, longo manto cor de fogo, espada desembainhada. A experiência ensinou-o a ficar atento, mais atento, no dia em que o diabo arma desacatos. Bruscamente, do meio do milheiral, irrompem gritos. Sobressalta-se na assistência. Eis o ataque: um homem em grande correria (quase nu, meia preta enfiada na cabeça) surpreende uma rapariga, arrasta-a para o cortejo.

O diabo fez a primeira presa. Acode, célere, Bartolomeu. Feroz e demorada a luta, mas os poderes do santo são mais fortes. Pouco depois, vê-se o demónio preso a cadeado; mesmo assim, investe contra as moças e as mulheres (o corpo feminino - não esqueça, leitor - é o lugar de eleição do maligno). O cortejo avança, repetem-se as cenas do jacto branco e as outras benzeduras. O tanger dos tambores; público, vindo de muitas partes, ora a gritar, ora a sorrir. Na retaguarda do desfile, dois mascarados, ao som da concertina, cantam ao desafio. Matreiro, aproveita um divino descuido e foge. Voltará, mais tarde, no momento em que o padre se preparava para casar os noivos, no palanque a escassos metros da igreja. Interrompe a cerimónia, rapta a noiva. Outra vez as correrias, trambolhões, gritos. A sedução de São Bartolomeu resolve, de novo, o problema. Vencido o belzebu, a lavoura dos cães, sempre em festa, regressa a casa.

Quem és tu, diabo?

O homem no papel do diabo deve ser solteiro. A explicação que nos deram foi esta: “Está mais livre para apalpar as moças». Gesto, enfim, de algum pudor cristão numa festa pagã, onde tudo vale e a lógica das coisas aparece ao contrário. A tradição não se cumpriu. O demónio que vimos era casado. Ágil, lesto, irrequieto. E, ajudado pela alegria fugaz do vinho, bebido antes do cortejo, levou quase ao extremo o desempenho do papel. No final, exausto, sangrava de ferimentos nas pernas e nos braços. Em São Bartolomeu do Rego, pode confirmar no próximo mês de Agosto, o diabo não é tão feio como o pintam Talvez por isso continue a mobilizar tantos devotos.

(texto publicado no DN, em 1994)

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