terça-feira, 14 de outubro de 2008

Segunda aparição

Ele desceu da tília, como quem vem do nada. Dirigiu-se a mim, chamou-me moço. De súbito, espessa sebe de rapazes e raparigas à nossa volta: como se o homem tivesse cara de actor da Gabriela ou de jogador do Benfica. Actor, enfim. Futebolista, por certo, não seria. O homem era um janota, bigode luzidio,
Moço, eu serei o teu protector.
Pôs a mão na minha cabeça, gesto de rei taumaturgo. O espanto comia-me as palavras, nada pude dizer. Um sonho, parecia um sonho: sob as tílias do Sá de Miranda, sitiado de curiosidade a apertar, cingir o círculo. A notícia serpenteou. Nutriu-se o cerco de docentes, contínuos, pessoal da cantina. O bibliotecário irrompeu na sebe, afoito,
É ele, disse. E o ponto de exclamação subiu até ao último ramo da tília. Ele, o homem, fez um gesto. Ondulou o círculo, como um cardume; o bibliotecário cada vez mais próximo de nós,
É ele, não há dúvida!
Quando todos os olhos debicavam o bibliotecário estendido na terra, sem sentidos, o homem sumiu. Entrelaçada e devota, a multidão quis tocar-me,
Salvem, ajudem o homem!
Pela primeira vez na vida, esvoaçava nas minhas palavras a força de uma ordem. Surgiu uma fenda. Deram-lhe água fresca, sentaram-no encostado à tília.
Era ele, não há dúvida!
A minha vida mudou. O bibliotecário, recomposto do abatimento, aconselhou-me a ficar uns tempos em casa. O segredo morre entre nós! Com certeza, respondi. Mas desconhecia qual a minha quota parte de segredo que teria de velar.
Quando regressei ao liceu, a verdura das tílias planava densa, misteriosa. E todos me olhavam como se eu fosse um anjo terreno. Na cantina, os empregados excediam a dose e levavam-me o tabuleiro à mesa. Não se incomode: ordens do conselho directivo, menino. A minha presença fertilizava o silêncio, o pavor. Já se imaginou a caminhar nos intermináveis corredores do Sá de Miranda por entre centenas de alunos mudos, quietos... ouvir o eco dos passos, o crepitar da roupa?
Um dia, o presidente do conselho directivo veio à sala de aulas, sorriso imenso e dócil. O senhor director do Diário do Minho pede-me para lhe comunicar que seria um privilégio falar consigo. Nós estamos de acordo, é um jornal sério, regido por ética quase divina... Mas última palavra é do menino,
Eu sou moço, senhor professor!
Conversa a dois, numa sala vazia. Antes iniciar a oral inesperada, o bibliotecário chamou-me à parte. Não mates a galinha dos ovos de ouro. O jornalista fez o intróito, longo, tão longo e vernáculo que parecia obra de discípulo do padre António Vieira. Depois a pergunta, de chofre,
Quem é o homem da aparição?
É ele, não há dúvida!, respondi.
A minha vida mudou. Serenidade só a das tílias, declarada na folhagem espessa, mais espessa. Se me dirigia para debaixo das árvores, o liceu ficava suspenso, boquiaberto, como se hibernasse por instantes. Mas do homem, nem sinal. Foi um sonho, não havia dúvida. Um sonho comum: meu e do bibliotecário que detestava Camilo. E não escondia o azedume a ninguém. Chegou, em tempos, a ser repreendido por um velho professor de Português,
Sem Camilo, a nossa literatura seria a nota de rodapé da Europa. E o senhor, o senhor gasta a vida a atirar-lhe pedras, a desviar os alunos do génio que honra a Pátria!
“Os Maias”, por favor. E o meu bibliotecário perdia-se em desvelos; os olhos chispavam de felicidade. Tinta páginas volvidas, porém, o romance regressava ao exílio,
Rapaz: se querias acirrar o espanto, devias ter pedido o Amor de Perdição...
Fui o único a ler o livro na íntegra. Aos meus colegas bastou um resumo da história, que alguém escreveu para livrar os vindouros dos estranhos amores de Carlos, da ironia (que só fazia rir o bibliotecário), da choldra lisboeta. Eu li-o. Todo. Eis o erro, o meu erro. Ele, não há dúvida. Ele próprio descera da tília e viera agradecer-me.
A minha vida virou tormento. A todo o instante me ssaltava a dúvida: quando e onde a segunda aparição? No liceu, na rua do Souto, no adro da igreja de S. Vicente, no Nosso Café? Em qualquer parte, menos ali, à porta das casas de banho do Cinema S. Geraldo. No intervalo do filme. Estendeu-me a mão, sem tirar a luva,
Que fazes aqui, moço!
Moço não vê filme pornográfico.
Na manhã seguinte, revelei ao bibliotecário a segunda aparição. Foi na Livraria Vítor. Ele surgiu, como quem vem do nada, estendeu-me a mão, sem tirar a luva. Um dia, ele virá agradecer-lhe. Pessoalmente. O segredo morre entre nós!

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