quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O homem do arquivo

Herdou do pai (um poeta que bebia aguardente e escrevia versos inocentes) a loucura pardacenta. Pardacenta? Talvez não seja a palavra exacta para armazenar loucura. Qual será o vocábulo justo? Este homem guarda, há anos, o sossego de palavras. Rebanho imenso, no redil silencioso – este sim, pardacento. Além de palavras, cataloga fotografias. Rostos. Rostos de jogadores de futebol, políticos, actores, ciclistas. E outros rostos ainda que a tragédia imortaliza por um dia. A todos protege, igual desvelo, em envelopes, no interior de pesadas gavetas.
Num envelope distinto e secreto, onde às vezes esconde a ternura de uma violenta, habita a Brigitte,
Telefonou-me ontem. Trate-a bem, com pudor: um coluna basta para lhe enaltecer a beleza.
Que desejava a Brigitte?
A dona Brigitte... Como sabe, não revelo conversas íntimas.
Aprendizes. Diz o homem, de novo a dividir a solidão pelo rebanho. Agora como se estivesse a conviver com o sorriso cínico do busto de Eça: Aprendizes, enchem-se de brios fazendo perguntas inúteis.
No jornal toda a gente lhe conhece a mansa loucura, até os tímidos estagiários. Ele é o Homem do Arquivo, porque abjurou o nome, o apelido. Nada deseja de herança do poeta dos versos ingénuos.
Tempos difíceis, porém, se avizinham no matutino, instalado num palacete enorme. O jornal parece visconde arruinado, a vender os anéis para manter a dignidade. A dignidade impossível. O palacete despe-se dos seus bens. Restam alguns computadores acocorados no anacronismo das escrivaninhas de madeira. E aí uma dúzia de jornalistas. Pardacentos. Bem vistas as coisas, diz o Homem do Arquivo, os jornalistas são os eternos pusilânimes. Querem mudar o mundo, e pouco, quase nada, fazem. Desdenham dos escritores. A suas prosas, sim! Seriam verdadeiras peças de arte se não fosse a imbecilidade dos revisores. Pusilânimes. Clamam protecção a Baco, madrugada dentro, mas as suas reportagens, decerto, bebem na ingenuidade poética do meu pai. Fixa os olhos no busto, Eça despacha o mesmo sorriso. Pusilânime... Onde ouvi eu esta palavra? Da boca do Jaime Brasil? Quem era o Jaime Brasil? Como se chamava o meu pai?
Pois, a memória. A memória é a punição dos lúcidos. Levanta o auscultador,
Muita boa tarde. Viram aí, na redacção, o empregado do arquivo? Desliga. Sorri, feliz como um menino, para o sorriso cínico. Pusilânimes. Rodopia três vezes sobre si próprio. A realidade morde-me os sentidos, Brigitte. Sei, eu sei, continuo a dizer palavras dos outros. É esse, afinal, Brigitte, o ofício dos jornalistas. Segundo o ministro, acrescentou o ministro... Pusilânimes! Querem reerguer o mundo com a suave mentira alheia.
Um dia roubaram-lhe por completo a identidade, o ofício. Privado do silêncio dos seus rebanhos para guardar, o homem emudeceu bruscamente. Sentia-se excluído, devoluto, um rosto anónimo sem a mortalha do envelope perdido nas pesadas gavetas.
Hoje, os jornais, disse o director ao conselho de redacção, não carecem de biblioteca. Nem de arquivo. É um desperdício de espaço, não acham?

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