quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O segredo das andorinhas

O Carlos leu, muitas saudades, um beijo grande para todos. A mãe começou a chorar. A mãe, agora, anda quase sempre a chorar. Não à nossa frente. Mas eu sinto quando a tristeza a enleia. Chora em silêncio: as lágrimas desprendem-se, rolam pelo rosto, como se dentro dos olhos existisse um cacho de pequeninas esferas de vidro; algumas cruzam os lábios e desaparecem. Nunca tinha visto chorar em silêncio, nem nos folhetins da rádio. Coisas de homem, diz o Carlos. O Carlos engana-me: eu vejo as lágrimas, a mãe em silêncio. É a primeira vez que lhe escrevo. É a primeira vez que escrevo a alguém: porque, eu pensava, os amigos não podiam viver longe. E muito menos me passou pela cabeça que me abandonasse. Foi trabalhar para outro país, não nos abandonou! Gostava de acreditar no Carlos, mas como é possível o Carlos falar verdade se o pai não está aqui! A mãe, a mãe, sim. A mãe ficou. Todos os dias, todas a noites, a todas as horas a posso ver. E dá-me um beijo antes do sono. Não conta histórias, e eu não me zango: a mãe trabalha muito, chega cansada à noite. E diz-me: dentro da nossa cabeça há uma gaveta pequenina, mais pequena do que uma caixa de fósforos, onde os meninos guardam o sono. Depois do beijo, lembra, baixinho, a boca quase dentro do ouvido: abre a gavetinha... Abro essa e a outra, a dos sonhos. E nos sonhos, longe e perto ficam à mesma distância: ao alcance dos olhos. Talvez o pai saiba explicar... sai todas as noites da gaveta.
O meu professor ensinou-nos a escrever parágrafos curtos; dessa forma, domina-se melhor a Língua. Como vê, o meu primeiro parágrafo é do tamanho de um comboio (foi um comboio... nunca vi nenhum, e odeio-os tanto). Não vai mostrar a carta ao professor, pois não?! Estou zangado, mas, diz o Carlos, o pai voltará em breve: e vai trazer-me (trazer-nos, diz o Carlos) uma bicicleta de corrida! Não posso acreditar: bicicleta de corrida não cabe dentro da mala. Cabe no comboio. Um tolo, o meu irmão: quem anda de comboio é porque não tem bicicleta, e quem a tem não viaja de comboio. O meu vocabulário é pobre, disse o professor. Disse, à frente de toda a gente. Contei à mãe. E a mãe ficou muito zangada (zangada, a mãe, parece deitar lume pelos olhos, como se nos olhos também arrumasse gasómetros acesos). É pobre, é... mas nesta casa ninguém passa fome! Para ser sincero, a mãe não terá percebido o sentido de vocabulário. Aconteceu-me o mesmo quando o ouvi – afinal, é um saco grande onde dormem as palavras. Se algumas dormissem para sempre, o mundo seria outro. E o professor, o professor conhecerá as palavras todas? Da segunda vez, disse: pobre... até no Português! Senhor professor, tenho duas gavetas na cabeça, mas estão ocupadas. Levou a mal, fustigou-me as mãos com a vara de oliveira. Quando nos castiga parece guardar também gasómetros acesos nos olhos. Eu menti-lhe. Há outra gaveta, onde prendo as pessoas más: tenho medo de a abrir, e nunca consegui fechá-la à chave.
O pai também chora em silêncio?
Não, não responda. Se tiver tempo, escreva-me. Fale-me do país distante. Daí vêm os tordos, no Inverno. O Carlos engana-me. Como podiam os tordos voar tão longa viagem. E as andorinhas imigram de terras muito, muito mais longínquas. Neste caso, dou-lhe razão. Mas ele não sabe o segredo. As andorinhas atravessam o mar, os mares, na proa dos navios. Quando os barcos chegam ao Tejo, elas levantam. E voam no céu português. Quem ensinou a caminho às andorinhas fomos nós: os portugueses descobriram novos mundos. As caravelas trouxeram escravos, ouro, laranjeiras, pimenta. E andorinhas que, por descuido, adormeceram nos mastros. É tarde, vou apagar a luz. Segredo, pai. A história das andorinhas é um segredo nosso. Quero ver a cara do professor ao ler proa, especiarias, mastros, imigram. Vocábulos, palavras, que ele não sabe que eu sei.
O teu pai imigrou ou emigrou?
Vou chorar. E eu não sei chorar em silêncio.


Touça, 17 de Setembro de 1971.


Fecho o caderno.
Apago luz.

A bicicleta e um rosto, exausto e feliz, iluminam a noite. O homem pedala do longe. Pai, mandou alguém trazer-me a bicicleta?! Nesse país deve ser assim que entregam as bicicletas aos meninos. Depois, o homem, fará a viagem de regresso – no comboio, como o pai. O meu pai pedala, exausto e feliz, na bicicleta. Abro os braços, não sei as palavras para o receber. Os abraços do regresso são diferentes dos abraços da despedida. Já sinto a barba por fazer na... Meu Deus!, a gaveta: uma mão foge da gaveta das pessoas más, sem espantar o barulho. E agora o pai pelada, pedala. Pedala como um ciclista em fuga veloz: o vento engole-lhe o boné, revolve-lhe o cabelo, as abas do casaco esvoaçam como andorinha a subir. Andorinha a subir no azul.
O pai já não pedala. Voa no céu, foge-lhe das mãos a bicicleta... A gaveta fecha-se. O pai lá dentro.
A mão. A mão má cresce como cobra estendida, enrosca-se na minha bicicleta tombada no céu, a roda da frente a girar.
Arrasta-a. Carlos!
Carlos, Carlos, ajuda-me! Ajuda-me, o professor quer roubar a bicicleta, a nossa bicicleta...
Carlos!


Não fiques triste. Eu só vou desvendar o segredo das andorinhas. Cuida bem da tua bicicleta. Disse-me, no dia da partida. E as lágrimas desceram, em silêncio, pelo rosto – algumas esborrataram o verde da farda.
O meu irmão estava a enganar-me.

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