terça-feira, 3 de junho de 2008

A Mãe não veio e um nobel incompleto

“Este ano não trouxemos A Mãe”, diz o homem que está atrás do balcão da Caminho. O pedido surpreende-o. Célere, tenta remediar. Indica-me outro sítio onde poderia achar o romance. “Na Europa - América, vi lá o Gorki”. Para aí vou e daí de mãos vazias regresso. Os exemplares que trouxeram tinham sido vendidos, para a semana há mais. É o dia inaugural da Feira do Livro do Porto, fracassa a primeira investida.
Digo que voltarei, mas A Mãe que desejava era a da Caminho, tradução de António Pescada directamente do russo, capa, muito bonita, de Henrique Cayatte. Os livros, certos livros, encerram esse fascínio: gostaríamos de os adquirir vezes sem conta como se ainda os não tivéssemos lido. Esquecemos Máximo Gorki por momentos. Uma freira atrás do balcão da Campo das Letras, editora de Jorge Araújo, companheiro de Álvaro Cunhal na clandestinidade, espevita-me um breve sorriso. A paragem, contudo, será mais além, na Livros do Brasil. E os olhos iluminam-se! Uma edição de Os Thibault, o comovente romance de Roger Martin du Gard, na zona do “pague um., leve três”, em bom estado. Não é tarde nem cedo. A edição que tenho em casa está, imagem de alfarrabista, cansada e a letra faz-se miúda.
Outra bola ao poste. Os Thibault estende-se, em escrita rigorosa e imaginativa, por três grossos volumes. Ao Palácio de Cristal, no Porto, chegaram apenas o segundo e o terceiro volumes do escritor francês, Nobel da Literatura em 1937. Pergunto pelo volume de abertura. “O que temos é o que vê aí”.
Passo pelo pavilhão do El Corte Inglès, estreia na Feira do Porto, e não resisto a levar mais uma edição de Platero e Eu. E hei-de voltar outro dia: há uma colecção imensa sobre a Guerra Civil de Espanha a merecer visita demorada. Paro, por fim, na Editorial Estampa. Meto no saco Ladrões de Prazer, poemas arábio-andaluzes, para dar. E aqui, sem pressas nem empurrões (no dia de abertura o Palácio de Cristal parecia uma catedral) revejo livros quase esquecidos. Outras gerações de leitores se fascinaram com eles, agora, quase indefesos, aguardam que alguém os ilumine do silêncio. O romance Natureza Morta, de José Augusto França; Apenas uma Narrativa, de António Pedro, ilustrada pelo autor; Lorca quase todo… quase todos as preços compatíveis à bolsa de quem viva com mais dez euros por dia.
Os livros. Às vezes o destino dos livros é cruel. E volto ao romance A Mãe, escrito há 101 anos, roubo estas palavras de Ribine: “Ajuda-me! Dá-me livros, daqueles que um homem, depois de lê-los, não encontre sossego.”

(publicado no DN (na revista IN), em 31 de Maio)

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