quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O BANQUETE


Os bárbaros voltaram à cidade

Que temos para negociar?

Vêm negociar a alma,
senhor  presidente.

Qual  alma?

A nossa,  nossa  alma.

Manda preparar um banquete.

Para quem,
senhor presidente?

É preciso receber com dignidade os amigos
o que seria de nós sem os bárbaros?

Não temos mais nada para lhes dar

temos a alma, a nossa alma soberana!

sábado, 20 de outubro de 2012

O PÁSSARO DA CABEÇA



Sou o pássaro que canta
dentro da tua cabeça
que canta na tua garganta
canta onde lhe apeteça

Sou o pássaro que voa
dentro do teu coração
e do de qualquer pessoa
mesmo as que julgas que não

Sou o pássaro da imaginação
que voa até na prisão
e canta por tudo e por nada
mesmo com a boca fechada

E esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada
senão para ser cantada
quando os amigos se vão

e ficas de novo sozinho
na solidão que começa
apenas com o passarinho
dentro da tua cabeça.

Manuel António Pina
O Pássaro da Cabeça, ed. A Regra do Jogo

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Da liberdade interior

Curvei-me


para beijar

as negras e bem polidas botas

do nosso amo

e então ele disse:

mais!



Curvando-me mais

senti

com prazer

a resistência

da minha coluna

que não queria estar dobrada



Feliz, verguei-me ainda mais

reconhecido ao nosso amo

por esta descoberta

da minha dignidade

e força

interiores



Erich Fried





segunda-feira, 24 de setembro de 2012

À ESPERA DOS BÁRBAROS


O que esperamos na ágora reunidos?

        É que os bárbaros chegam hoje.



Por que tanta apatia no senado?

Os senadores não legislam mais?


        É que os bárbaros chegam hoje.

        Que leis hão de fazer os senadores?

        Os bárbaros que chegam as farão.



Por que o imperador se ergueu tão cedo

e de coroa solene se assentou

em seu trono, à porta magna da cidade?



         É que os bárbaros chegam hoje.

        O nosso imperador conta saudar

         o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe

         um pergaminho no qual estão escritos

         muitos nomes e títulos.




Por que hoje os dois cônsules e os pretores

usam togas de púrpura, bordadas,

e pulseiras com grandes ametistas

e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?

Por que hoje empunham bastões tão preciosos,

de ouro e prata finamente cravejados?


         É que os bárbaros chegam hoje,

         tais coisas os deslumbram.



Por que não vêm os dignos oradores

derramar o seu verbo como sempre?


         É que os bárbaros chegam hoje

         e aborrecem arengas, eloquüências.



Por que subitamente esta inquietude?

(Que seriedade nas fisionomias!)

Por que tão rápido as ruas se esvaziam

e todos voltam para casa preocupados?


         Porque é já noite, os bárbaros não vêm

         e gente recém-chegada das fronteiras

         diz que não há mais bárbaros.



Sem bárbaros o que será de nós?

Ah! eles eram uma solução.



Konstantinos Kaváfis

trad. José Paulo Paes


Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982



terça-feira, 28 de agosto de 2012

A CASA


O homem só escuta a voz calma
de olhos semicerrados, como se uma respiração
lhe aflorasse o rosto, uma respiração amiga
que ressurge, incrível, do tempo passado.

O homem só escuta a voz antiga
que em tempos idos os seus pais ouviram, clara
e recolhida, uma voz que é como o verde
dos pauis e das colinas, que escurece com a tarde.

O homem só conhece uma voz de sombra,
cariciosa, que brota em tom calmo
de um manancial secreto: absorto, bebe-a
de olhos fechados, não parece estar junto a ela.

É a voz que um dia fez deter o pai
do seu pai e cada um dos antepassados.
Uma voz de mulher que soa secreta
junto da soleira da casa, ao cair do escuro.

Cesare Pavese
trad. Rui Caeiro
O Vício Absurdo, ed. & etc

sábado, 25 de agosto de 2012

Pedra maneirinha


arroteia-se o chão bravio


o tojo   raízes

fetos  urze outros arbustos

de teimosia à secura

se faz monte de palavras

mortas que o fogo ilumina.





cinza uma ou outra ponta

de raiz por arder

o ancinho junta esses focos de resistência

que a luta homem fogo terra

é muito antiga





de novo o fogo

serpe de fumo a desentender-se

no dia claro.



uma voz ao fundo

o homem suspende o gesto

livra os   bois   do jugo

transitória acalmia

na clareira cercada pelo bosque

e seu doce rumor de seiva.



a ocupação da paisagem

pela rebeldia domesticada do gado

à força de braços

alvião enxada ferro de monte

se amanha a pedra

amanhã rasga-se alicerce

as pedras acham abrigo

harmonioso afagar de cantaria

se abraçam entrelaçam

sobem devagar como árvore

de fruto: eis os socalcos

a embargar aluviões do devir



da cinza das palavras mortas

novo vocábulo desponta

a paisagem se  r e

p a r t e

e não é de todos: a posse excluiu

levanta sebes muros

paredes de pedra maneirinha



o mundo dos recolectores na rota dos frutos

viver silvestre entre penúria e bagas maduras

conchas marinhas

veado cativo na armadilha: essa humanidade

se mistura em restos de folhas

ossos  silêncio fragmentos de galeões

e se forma smatéria da aluvião



palavras mortas tojo
 
      raízes

arbustos

caroços de pessegueiro bravo

fogo

o fogo não tem memória.



francisco duarte mangas



Rossas, finais de julho




domingo, 19 de agosto de 2012

A mulher de Ba

As águas do rio Ba
        são flechas disparadas de um arco,
os barcos no rio Ba
        parecem voar.
Milhares de quilómetros distante,
        centenas de dias ausente
e quantos anos
         para o regresso aos meus braços?


Li Bai

Trad. António Graça de Abreu