Cartas da prisão
ao filho que ia morrer
Do Forte de Peniche, nos anos sessenta, o preso político António Dias Lourenço escrevia e ilustrava histórias infantis para o Tóino - o filho que morreu pouco depois, sem ver o pai em liberdade. Quatro décadas mais tarde, os postais de prisão foram reunidos em livros, para as crianças de hoje conhecerem um tempo brutal.
Publicou As Cartas da Prisão para o Meu Filho Tóino (Ed. Avante!) para lembrar às crianças de hoje os «anos de que não ficou uma linha, um objecto, uma foto»?
O livro tem isso na raiz. A minha família foi toda presa: o Tóino, uma irmãzinha mais nova, eu e a mãe. O meu menino oito anos depois morreu. E eu ainda estava e continuei na prisão, no Forte de Peniche.
O seu filho ficou a viver com os padrinhos. Lembra-se da última visita?
A última visita mostra bem a hediondez como eram tratados os presos político. Deram cinco minutos para me despedir do meu filho, e puseram de vigilância nesse dia – Tóino não sabia que ia morrer, mas eu e os guardas sabíamos – o guarda mais estúpido, mais bestial que havia em Peniche. Começo a visita com o meu menino, e a certa altura essa besta bate no pulso e diz, aos gritos, «cincos minutos! Está na hora, acabou-se a visita». O primeiro gesto que me empolgou foi atirar-me a ele ao pontapé e ao murro, mas lembrei-me de que era a última vez que via o meu filho. Não quis que a última imagem que levaria de mim era a de um homem que andava à pancada com outros homens.
O seu filho morreu de leucemia pouco tempo depois.
Por abertura dos camaradas franceses, o meu filho foi ainda a Paris para ser tratado, mas sem sucesso. Daí partiu para União Soviética, onde morreu. Era uma criança extraordinariamente inteligente. Em França era ele o interprete com os padrinhos; na União Soviética, também: aprendeu o francês e o russo nessas condições.
Os desenhos e as a histórias infantis foram a forma que António Dias Lourenço encontrou para conviver com o filho ausente?
Como sabe, eu estava em prisão celular, 24 horas por dias fechado. Durante 14 anos. Não havia condições para acompanhar o desenvolvimento dos meus filhos mais novos. A única forma que tinha de o ajudar era, exactamente, enviar-lhe esses postais.
Postais ilustrados, com histórias dentro. Funcionaram também como uma espécie de manual de educação?
Muitas professoras, que têm visto o livro, gostam dele por causa disso.
Hesitou quando o convidaram a publicar estas memórias tão íntimas?
Nunca pensei que os postais dessem depois um livro. A certa altura, uns amigos da editorial vêem os originais e disseram: «O pá, isto dá um bom livro». E assim saiu este livro bonito que está a ver. Deve ser visto, apenas, como «estorinhas» das de dizer boa-noite aos nossos filhos.
A PIDE censurou alguns dos postais?
Nós tínhamos encontrado a forma de fazer passar alguma coisa possível para a formação dos nossos filhos, evitando que a censura cortasse. Tinha muito cuidado no que escrevia de maneira a que passasse, em que pudesse dizer aquilo que achava útil e necessário para os desenvolvimento dos meus dois últimos filhos – os outros dois, uma andava na clandestinidade, também passou sete anos na cadeia, a outra, do meio, estava em Angola, a viver com os meus cunhados.
Havia alguma mensagem cifrada nas histórias?
Para os meus filhos não podia... Para isso tínhamos outras formas de ligação.
Como fazia os desenhos e os contos?
Estava sozinho fechado na cela, Trabalhava num tampo ligado à parede, que fechava e abria: fazia aí os desenhos, escrevia e lia. Eles não deixavam entrar aquilo que nós queríamos ler.
Qual era a regularidade de envio dos postais?
Não mais que um por semana. O meu menino era muito inteligente. Viveu oito anos com os padrinhos que o acompanharam até ao momento da morte: eles para ele eram os verdadeiros pais. Durante uma visita, tinha ele nove anos, diz-me assim do lado de lá das grades: «Ó paizinho, eu gosto muito de ti, mas gostam também muito dos padrinhos». Ele devia estar diante deste problema, «eu devia gostar mais do meu pai do que dos meus padrinhos, mas gosto também muito dos meus padrinhos». Não deixei passar isso, e disse-lhe: «É justo que tu tenhas amor aos padrinhos, eles tem sido para ti verdadeiros pais – estás a ver, o pai e mãe estão presos, é justo que tenhas por eles um amor assim tão aberto, é bonito que tu faças isso». Você não calculam o ar dele a seguir, ficou tranquilo - ele tinha esse problema moral lá dentro.
O Tóino também lhe mandava desenhos para a prisão?
Mandava. Quando morreu já escrevia, andava na escola... Mandava-me coisas escritas, que eu perdi.
Como recuperou estes documentos?
A madrinha do meu filho guardou todos os postais. Depois do 25 de Abril, antes de morrer, devolveu-me tudo. Para mim foi um precioso capital que me deu da vida e do meu filho.
Quando o visitava na prisão, Tóino falava-lhe das histórias?
Tem de compreender que eu estava preso, com um guarda atrás de mim e a falar com uma criança de menos de dez anos...
Nem das personagens das histórias?
Às vezes vinha uma coisa ou outra. Eu tinha de encontrar a maneira de conversar com o meu filho e ao mesmo tempo conversar sem que o guarda viesse, como vinha muitas vezes, dizer: «não pode falar assim, tem que falar mais alto»... Como eu não era parvo nenhum, procurava que isso não acontecesse. Não queria criar conflitos com os guardas diante dos meus filhos.
Também mandava postais ilustrados para a Lelita, a sua filha?
Também, também mandei. Mas a minha camarada com quem ela vivia em Coimbra morreu, e desapareceram os postais. Os postais para a Lelita eram no mesmo sentido, com conteúdo idêntico aos que integram este livro.
Muitos camaradas seus ficaram espantados com a qualidade dos desenhos...
Compreendo, eu não tenho nenhuma mania... mas também tenho o sentido de avaliação e sei que esses desenhos aí são bonitos. Fui aluno do Abel Manta e de Maria Clementina Carneiro de Moura, eram muito meus amigos. Foram os meus mestres de pintura e desenho. O livro está bem pintado, acho eu, era uma noção que eu tinha já feita das minhas habilidades artísticas. Quando fiz esses desenhos não estava a pensar na publicação de um livro;o não é copiado de nada, isso é minha pura inspiração, eu não tinha nada para copiar.
Depois de sair da prisão, continuou a actividade artística?
Não. Depois tinha mais que fazer. Saí da prisão com o 25 de Abril, entrei no Avante!, onde fui director durante 17 anos... os desenhos que fazia era o editorial e discutir com os camaradas o conteúdo do jornal. Quando assumi a plenitude da minha vida, todo o meu tempo era dedicado ao trabalho do partido. Era capaz de dar um bom pintor... Escrevia também poemas, ainda guardo um grande número de poesias minhas que tem um certo valor.
Pensa publicar essa poesia?
Sou capaz de pensar nisso, talvez publique. Eu penso fazer uma coisa do tempo passado, porque há gente que está a querer falsificar a História. Quero fazer o possível para que certos factos não sejam falsificados. Principalmente os que vivi e tenho a certeza de que não se passaram assim, nalguns até tive um papel responsável. Quero ver se antes de morrer consigo escrever isso - já estou quase nos 9 a zero - faltam três meses para fazer os 90 anos.
(entrevista feita em 2005)
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