Espanta-se. Os mesmos rostos a assomar à janela, o mesmo brilho viscoso do lajedo, a velha gata no alto da manhã lambendo o sol. Estranho, diz o homem. Ninguém o ouve, ninguém o conhece. Olha as fachadas, como turista atento à arquitectura de bairro proletário. Que procura? Talvez uma placa que lhe indique a casa onde nasceu. Mas na Rua das Musas não existe esse pequeno rectângulo de mármore para atear a memória. E o homem, por momentos, estanca na dúvida. Será aqui?
Desce até à esquina, ergue a cabeça: confirma. Sobe devagar o empedrado de granito, onde as “lágrimas” fabricavam “lama”. E um brusco desassossego emociona-o: a casa ainda existe? Pára. É aqui, só pode ser aqui. Hesita, suspende o gesto, a mão fechada. Recorda versos alheios, mas não a acha na memória; cita a ideia: feliz quem encontra a porta e chora diante dela. O braço avança, os nós dos dedos ressoam na madeira, uma vez, duas vezes. Silêncio. Ouve passos,
Quem é?, voz indecisa, receosa.
Sou eu.
Que deseja?
Eu procuro a casa onde nasci...
Enganou-se no número.
Silêncio. Os passos distanciam-se, arrastam murmúrios. O homem volta a bater, uma vez, duas vezes,
Abra, por favor.
Os passos de volta, mais rápidos, impelidos talvez pela ira. A porta abre bruscamente. Silêncio. O homem sorri, estende os braços, como se quisesse medir a largura da casa, a largura do mundo,
João... Que fazes aqui, João?!
Sabe o meu nome!
“Era uma vez um rapaz chamado João que vivia ...»
«... em Chora-Que-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro...», continuou o João. Abraçam-se, desmedida ternura como sempre acontece quando alguém descobre uma personagem fora do livro.
Entre, a casa é sua. Entre, sempre foi sua.
A porta encerrou devagar contra a luz da manhã. Os passos por dentro da casa, por dentro da úmbria, por dentro da memória, sobem estrepitosas escadas de madeira. Felizes, o autor e a personagem.
Sente-se, por favor: sente-se.
O homem senta-se, na única cadeira da sala vazia, imersa na claridade da manhã que entra pelas janelas. No alto da parede, um letreiro (esse sim, sabia-o de cor) prende-lhe os olhos: “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”.
Esteve algum tempo afixado na fachada, mas os vizinhos apresentaram queixa na Câmara Municipal...
Queixa!
Sim, uma queixa, um abaixo-assinado. E foram à Assembleia Municipal expor de viva voz o caso. Além de escrito a vermelho, alegaram, o letreiro dava má fama à rua. Que, apesar do nome, é de gente séria e honesta...
E os da Câmara?
Mandaram dois funcionários com uma escada retirar “esse atentado à decência». Acudi a tempo, e guardei-o. É tudo o que tenho, é o meu tesouro. Quando, há bocado, ouvi bater à porta, julguei que eram eles. Acredite, fiquei com medo.
Medo. Tu tens medo, João!
O Muro caiu. Andamos todos espantados de existir.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
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