Pré-história
Cansado de humanidade, ganhou pêlo. Abjurou a marcha bípede, subiu às árvores do bosque: comeu frutos e enxotou pássaros. A família pôs anúncios nos jornais. Dava alvíssaras a quem a informasse do paradeiro do homem. E ninguém até hoje descobriu o professor de Pré-história, com horário incompleto.
O salto
Sou o presidente das minhas ideias. Avisa o homem do saco de cabedal. Oferecem-lhe cerveja fresca como chocolate para cativar criança. Acabaram os passaportes para o paraíso. A partir de agora, quem quiser dar o salto terá de pagar ao passador. Ao passa dor. Sujeita-se, como outrora, à exploração dos contrabandistas da penúria. Os outros murmuram. Um deles, tímido, pergunta: quanto poderá custar a passagem. Sorri o homem do saco de cabedal. Vinho para todos, pago eu! É espantoso como esta gente apalpa a metafísica.
Ofício
Nasceu com um defeito na sinistra. Nos dias de feira, expunha a deficiência e o brilho das moedas tombava na boina preta. O homem, o homem sabia meio ofício divino: cantava missa, sem ser tonsurado. E pertencia-lhe um olhar lancinante e triste, próprio de pregador que acirra os prantos femininos. Um dia, porém, o império estremeceu: outro pedinte arribou à feira. Nada a fazer, teriam de repartir o mercado. O outro desconhecia o ofício divino. Mas ostentava uma perna roxa de chagas e pus, sobrevoada por bando voraz de moscas. Olharam-se com ódio sombrio. Faz queixa à guarda! Atiçou o da perna roxa. Optou pela legalidade. Na Fazenda Pública exigiu ser colectado. Eu pago os impostos, mas tirem-me de lá o leproso. Riram, os das Finanças: Tu estás isento de impostos, fazes parte do clero. Há dias, alguém o viu refastelado numa cadeira de baloiço, vestindo um bom fato - afagava com a mão esquerda um alentado gato persa.
In O Homem do Saco de Cabebal, ed. Campo das Letras
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
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