terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Nenhuma infância, mesmo a dele


Ergue-se da manjedoura, entontecido pelo bafo a feno ruminado. Enfim, é a hora de andarilhar o seu caminho: nenhuma infância, mesmo a dele, terá tempo para ser eterna. Está frio, muito frio. Como poderá o menino sair assim, desagasalhado, do estábulo? A notícia corre ligeira. Vieram emissários de toda parte, uns de avião, outros de automóvel. Amáveis como o menino nunca vira ninguém, sorriso aberto, suaves gestos, palavras tépidas como o vinho. Todos quiseram ajudar. Tanta generosidade espanta, assusta o menino. E prometem-lhe roupa para a vida toda, vivesse ele a vida toda; leite, iogurtes, bolachas, Ben-u-ron, fraldas rigorosamente impermeáveis.

O que quereis em troca?

Nada. Quase nada, disseram.

Que apareças em público com roupa da nossa marca

a beber o nosso leite…

e se as febres te tolherem, diz que tomarás o nosso xarope.

Isso não farei. Quero vestir-me como os meninos do meu tempo; alimentar-me como os meninos do meu tempo, vencer a febre como

Impossível o teu desejo, alguém interrompe. O teu tempo perdeu-se, não existem meninos do teu tempo.

São homens?

Foram meninos, homens…

E depois?

Desapareceram, é a lei da vida.

O menino volta-se devagar, dirige-se à manjedoura. Acomoda-se na palha: adormece, sereno, embalado pelo bafo do tempo perdido.

À porta do estábulo, o desassossego agita a boa gente, agora indecisa a calcar estrume de dois milénios. Um deles, afoito, segreda algo ao ouvida da vaca.

Não!, reage o dócil animal.

Tu podias salvar humanidade da fome, da penúria!, implora o emissário afoito.

Sou muito velha para você me tratar por tu… Deixe-nos em paz!

Partiram. Uns de avião, outros de automóvel. Em redor do estábulo amontoam-se presentes. Roupas, fraldas impermeáveis, brinquedos de um tempo futuro. Dormirá mil anos, mil anos mais, o menino: emaranhado no sono, no sonho perpétuo de ser menino?

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