terça-feira, 30 de outubro de 2007

Pavese no Café Ceuta

Um copo de cerveja. O caderno aberto, onde escassas palavras encontram resguardo. Breves palavras. Nas tílias da Praça Filipa de Lencastre, uns passos abaixo, a verdura enlaça os ramos. É Maio, o fulgor do mês de Maio. Há muito tempo, o homem do saco de cabedal confiou-me um segredo: a rebentação da folha dessas apaziguadoras árvores açulava a angústia. Desconforto antigo. Na aldeia do homem do saco não havia tílias. As árvores, no campo, ofereciam fruto ou madeira de excelência. Qualidades arredias da tília ornamental. Desaba sombra na terra: sombra molhada e generosa, como todas, ou quase todas as árvores de crescimento sôfrego. Fruto, fruto, se o dá, nunca ninguém lhe meteu o dente, e a arte da carpintaria despreza-lhe a madeira: espevita a gula do caruncho, cede indefesa à melancolia da humidade. Ele viu as tílias pela primeira vez em terra distante. Era jovem ainda, tresmalhado dos montes: o porte altivo da árvore surpreendeu-o, o garbo dos ramos também. E só mais tarde lhe pôde sentir, sem desassossego, o aroma ameno a adocicar a Primavera. A folhagem da tília, invisível ferro caldo, marca um tempo da juventude: quando o cocuruto atinge verdura plena, irrompe a época dos exames – tempo de alegria perturbada.
Da mesa do café, o homem não vislumbra as árvores da Praça Filipa de Lencastre. As mesmas palavras, no caderno aberto, acocoradas na caligrafia mínima, canhestra: rebanho transido a pressagiar odores do lobo? O homem espera alguém que eu desconheço, personagem de um sonho – ou de livro? –, talvez um amigo esmaecido na memória. É esse o vício. O seu vício absurdo quando recolhe à cidade. Senta-se no Ceuta, bebe cerveja fria, o caderno aberto no tampo da mesa. Antes da noite, desce à Filipa de Lencastre, observa as árvores, a grandeza silenciosa das tílias que lhe aferraram a juventude. E parte depois, numa das camionetas da Rodoviária Nacional, rumo a lugar nenhum. Hoje, não. Declina a tarde, o homem adivinha algo de estranho. Rude lembrança, não muito antiga, devolve-o ao início de outro Maio, a trágica noite na Avenida dos Aliados: povo escorraçado à força de bastão e balas. A lembrança, essa memória com sangue, incomoda-o, tanto que pede cerveja e retoma a escrita, como se a escrita fosse gesto animal de esgravatar no papel para encobrir impurezas. «…Podes amar uma cidade fora da geografia da tua infância? Leve sopro derriba os amores adoptivos, carece de afecto primordial a sua frágil argamassa. És desconhecido, serás sempre um estranho. Tu não sabes amar a cidade. A cidade, de igual modo, te abandona. E aqui foste feliz, guardas ainda fragmentos dessa transitória e irrepetível felicidade. Do Largo dos Grilos, madrugada de Junho, vias esquiva luz beber o rio; o arraial florescia, e tu escorrias por uma escadaria quase infinita. À tua frente esvoaça a fina saia longa da mulher que amaste, amas. Ainda amas. Pela mesma escadaria, soubeste depois, mulheres de um tempo brutal, em sentido inverso, irrompiam da água com molhos de carqueja à cabeça. Feixes desmedidos, as mulheres perdiam o rosto, abdicavam da humanidade: eram (a imagem não te pertence) árvores da floresta andarilha. Nessa madrugada de juventude, nada sabias do tormento das carquejeiras, mulheres no limiar da humildade. Era a festa, o povo todo nas ruas… Como é possível negar amor a uma cidade que enfeita a noite com ervas de cheiro? Um vulto magro, destoante no vestir, aproxima-se da mesa. O homem do saco de cabedal suspende a escrita: olha-o,
Eu sabia!
O desconhecido pede água mineral, num tom de peregrino enfraquecido. Observa o caderno aberto,
Verso longo… Curioso, também o julgava mais velho, rente à morte!
Olham-se, o peregrino apercebe-se do equívoco,
Peço desculpa…
Faz um gesto ao empregado. Paga a bebida, vai abandonar a mesa. O homem do saco de cabedal, toque suave no ombro, impede-o, Li todos os seus livros, os romances, a poesia, o diário, um imenso fastio de tudo. Um gesto. Não escreverei mais: última fala do Ofício de Viver.
O outro homem diz. Li todos os livros do poeta que aqui julgava encontrar, O Peso da Sombra, As Mãos e os Frutos, Os Amantes Sem Dinheiro… palavras luminosas, amena melodia pastoril por dentro. Por isso, viajei de lugar nenhum, do silêncio mais longínquo, até esta cidade.
Por que arte chegou aos livros em lugar nenhum? Interrompe o homem do saco de cabedal (acena ao empregado).
Os livros, primeiras edições, chegavam ao silêncio mais longínquo, sem dedicatória, na companhia de um cartão manuscrito. Caligrafia de outro tempo, elegante, de quem deveras ama a escrita. O autor desses cartões é, com certeza, um arquitecto: quem povoa a folha em branco, descobri ao ler esses bilhetes, desenha a casa das palavras… Boa cerveja!
O homem do saco de cabedal fecha o caderno, não vá o viajante de lugar nenhum ver na caligrafia um bairro de subúrbio, emaranhado e triste. Sujo, imundo e violento,
Na temperatura certa, toda a cerveja passa por boa… (Guarda o caderno no saco). O poeta que procura não frequenta este café. Vive cerce ao rumor do mar, rosto precário disperso nas paredes da moradia. Rente, rente à morte. Rente à morte, sim.
Não é o poeta que procuro,
diz o desconhecido.
Eu sei. O outro, o que constrói a casa das palavras, decrua sonhos no Café Progresso, bem perto daqui.
Leve-me lá, por favor!
Será uma honra. Antes de partirmos, permita-me uma pergunta, uma única pergunta: a mulher da colina, onde se derramou o sangue e largámos o nome e arma, ainda espera por nós?
Basta de palavras.
O homem de nenhum lugar levanta-se, perturbado. Abandona o café – atravessa a rua, passo destemido contra a furiosa impaciência dos automóveis.
Retira o caderno do saco, abre-o. Retoma a escrita,
«.Tu não gostas das cidades

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