domingo, 26 de agosto de 2007

O receário

Observa o rio enquanto caminha, parece pescador de pluma a traçar mentalmente o lance. “A morada das trutas será sempre a limpidez da água”, diz o homem. E entristece envolto nessa fragilidade de sabedoria antiga. Atravessa a ponte: pára num círculo de sombra, espessa e balsâmica, que o cedro recorta na estrada. “Os romanos inçaram os nossos rios, traziam as trutas nos odres. Quem hoje sabe o que é um odre? A palavra”, continua o homem a pensar, no círculo de sombra, “a palavra: fala comigo, dir-te-ei de que tempo és”. Dá um passo em frente, ainda por dentro da sombra, polegar inclinado: o automóvel afrouxa a marcha, ele mantém a posição do dedo. E, de súbito, o gesto acorda longínquo pavor, as palavras receário, tridente, só depois: arena, a apinhada, colorida e rumorosa arena. Entra devagar, como se fosse muito velho. O automóvel arranca, e o homem informa o motorista: “Podia estar já morto, poupei-lhe a sua vida de gladiador”.

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