domingo, 26 de agosto de 2007

Afiar a melancolia


De repente, tu estás na página, dentro do livro. Como se fosses personagem. Conheces as colinas. O espanto tolhe-te! Alguém te roubou os sonhos, sabia teus segredos. Coisas simples: como o menino que sonhava ter um canivete. Vasculhas a memória, lembras-te do autor. E o livro? Em que livro dorme o menino do canivete para, como os homens da aldeia, afiar a melancolia? Terras do Meu País, A Lua e as Fogueiras, Fogo Grande? Pouco importa. Há anos, tu entraste na página – e ficaste. Como o menino, ao lado do menino. Não adianta perturbar o silêncio do livro que te levou à terra de Pavese. E conhecias o rumor das colinas, o sorriso das raparigas, o cheiro dos fenos curtidos pelo sol de Agosto, os homens bruscos, violentos, que encostados aos muros fumavam devagar o silêncio da manhã.

Alguns livros são assim: nunca mais voltarás a eles, e eles acompanham a tua vida. A tua vida toda. Não adianta procurar. Tu sabes onde está guardado, sempre soubeste. Segredo, um segredo só teu, que ninguém roubará. Nem mesmo tu. Temes, tu temes, voltar ao livro. Pode ser o desencanto, súbito desengano: como se encontrasses em lugar nenhum a mulher que amaste, verdadeiramente amaste, há muitos anos. O encantamento amoroso, que entrelaça a juventude, é irrepetível. O autor do livro, que tu temes abrir, foi mordido por esse estranho sentimento. E procurou, gesto supérfluo, o resgate do fascínio longínquo em todas as mulheres que sabiam a mar, ou traziam o cheiro suave dos fenos no corpo – ou eram apenas simples mulheres.

Outros livros vieram, outros livros, por certo, aguardam a tua caminhada silenciosa na página. Agora talvez não reconheças as colinas. Compraste e perdeste, eu sei, a pequena navalha, uma Opinel nº 3, cabo de madeira. Com ela, afinal, não aguçaste a vara de salgueiro verde, como os homens da aldeia onde nunca foste: escreveste, isso sim, uma palavra (um nome, talvez) no tronco do plátano, junto ao rio. A árvore cresceu, a generosidade do tempo encobriu a cicatriz. E a palavra, tu sabes, a palavra fez-se seiva, terá desaguado límpida no coração do plátano. A palavra, essa palavra de paixão quase clandestina, deixou de te pertencer. Como todas as palavras que escreveste sem endereço definido.

Esquece o menino na página. Procura uma palavra nova. Harmoniosa e precisa. Exacta. De fogo e rebeldia. Que te enrede, te sobressalte outra vez. Esquece as mulheres que sabiam a mar, e as que traziam os cheiros dos fenos fingidos no corpo. Procura o livro. Tu sabes onde está guardado, sempre soubeste. É uma parte distante da tua vida que resguardaste da luz, como se tivesses rasurado o rosto de uma fotografia a preto e branco. Entra agora na página, nesta página que escreves lentamente. O rumor das colinas, escuta, o harmonioso rumor das colinas. Persiste na escrita, como se voltasses a golpear o escorregadio plátano, rente ao rio. Não é, nunca será, gesto escuso a escrita que um dia se transmuta em seiva. Palavras viageiras, alcançam o ponto mais alto da árvore, apoderam-se da doçura dos frutos – voam depois, luminosas, no coração das aves.

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