sábado, 1 de janeiro de 2011

Lugar nenhum

os utopianos cultivavam uma arte incomum: a felicidade, a procura da felicidade, nos ritos da terra. todos eles plantaram pelo menos um sicómoro. todos eles, os utopianos, subiram ao ramo mais alto da bíblica árvore para verem lá longe em lugar nenhum, na geografia do devir, a cabeça sem corpo de tomás morus.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rapina

bebamos a mágoa branca
do inverno
entretanto a magnólia
mostra seus esporões
falsa árvore
de rapina
em breve vai florir
o sono dos pássaros.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Conflitos entre herdeiros universais

O meu Marx há-de arrancar
as barbas ao teu Marx

O meu Engels há-de partir
os dentes ao teu Engels

O meu Lenine há-de esmigalhar
os ossos ao teu Lenine

O nosso Estaline há-de meter
uma bala na nuca do vosso Estaline

O nosso Trotzki há-de rachar
a cabeça ao vosso Trotzki

O nosso Mao há-de afogar
o vosso Mao no Yang tse

para que deixe de obstruir
o caminho da vitória

Erich Fried

100 Poemas sem Pátria

sábado, 27 de novembro de 2010

Gralhas, caça furtiva

Um bando de gralhas
sobre a escrita
cínicas como gavião
que lá das alturas
cativa indefeso perdigoto.
que procuram as gralhas:
alma redimida de palavra ferida
ou agasalho nos ramos frios do inverno?
Digo ao meu filho,
traz a caçadeira e os cartuchos de pólvora nobel
chumbo 8,
porque esta espécie de gralha maior não é
do que palavra tordo de papo ruivo.

retomo o antigo rito da caça
pela primeira luz da alva
camuflado na brancura do papel
a velha espingardada de canos paralelos
ao ombro
o cheiro da pólvora queimada entontece
já a caça foge da escrita

domingo, 21 de novembro de 2010



>Um pai natal à moda antiga, inventor de brinquedos de madeira, exausto de tantas viagens debaixo da neve, delega arte e o generoso ofício no filho. Parte de madrugada: no regresso, dias depois, só as renas e um capote. O filho, que adorava as árvores da floresta, repartia desde menino solidões, dúvidas e alegrias com um caracol. Inseparável amigo que transporta uma rara virtude: pensa, pensa devagar e bem. Certa manhã, o jovem leva as remas à clareira da floresta a beber a frescura do mundo, como sempre o seu pai fazia pelo mês de Maio. De repente, os animais suspendem o pasto, erguem a cabeça: no centro da clareira, aparece um capote forrado a pele de marta que agasalha uma menina de escassos dias de vida. A Menina é uma inesperada história de amizade, de reencontros, de subtis sentimentos que parecem não existir mais entre as pessoas. Uma história também de amor pelas árvores e por outros seres da floresta. A dado passo, uma dúvida sobressaltará o leitor: o que é feito da mãe do jovem pai natal?

ed. Caminho das Palavras

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

[romã]

Granada a clara, que seca roupa
ao luar, romã entreaberta
que sangra e chora
(pela boca da ferida) o seu poeta.





Jean Cocteau

sábado, 6 de novembro de 2010

Animal faminto

as palavras
o seu olhar silencioso
de animal faminto
sua leveza interior de árvore em repouso.
há palavras assim
e de algumas me fiz
amigo - sacio-lhes a fome.

a fome das palavras
é doce como um fruto.