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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Os livros são perigosos



Um leitor imaginado por parte da biblioteca, que encontrei num farrapeiro do Porto, pensaria assim dos livros. “Fui feliz com alguns, com outros fui leitor. Parecem gente. Ou árvores. Em certos momentos, são como gente, incendeiam a mágoa, turvam a água da alegria. Quando assumem o espírito das árvores, este pequeno andar da cidade, numa rua tímida, é rumorejante bosque”.  Do fim de março até o plátano sacudir a folhas, na casa do leitor imaginado, os livros eram como árvores. “Quantos cuido, de que tamanho é a floresta? Abstenho-me de o dizer. Por modéstia, que é doença benigna, abjuro contar os livros. Contá-los, como o pastor soma as reses do rebanho, tornar-los-ia simples artefactos decorativos” (1).
Os livros não são artefactos decorativos para o leitor imaginado, nem para mim, nem para o antigo padre de Parado do Bouro, nem para muita outra gente. Quem por eles viaja, incendeia a mágoa: abre portas à alegria ou à revolta. Os livros são perigosos, poderosos, desapiedados; outras vezes, “gado servil”(2) ou  inocentes como sorriso de uma romã. Há de tudo, portanto, no cardume de  múltiplas espécies. O leitor apaixonado, a princípio, não enjeita nenhum dos peixes. Mais tarde ou mais cedo  fará escolhas.   Começo a aprender essa arte de leitor: a ideia de ler todas as obras que vou levando para casa é a mais improvável e doce das utopias. Ao contrário de certos livros, o sopro da eternidade não envolve quem lê, o leitor não é eterno como a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, que 400 anos depois continua a cativar viageiros transitórios da palavra.

O tema nesta mesa é afirmativo. Ler faz bem. Será assim, com esta candura poética, entendido por toda a gente?
Eu nasci numa aldeia, cercada por montes. A primeira vez que vi livros juntos, cardume razoável, foi no interior de uma carrinha. Em certo dia do mês,  a fabulosa carrinha aportava no largo da aldeia. Nós, os mais jovens, que dos mais velhos poucos sabiam ler, corríamos à biblioteca itinerante, deslumbrados pelo mistério dos livros: como se através do encantamento da palavra  nos fosse possível ultrapassar os montes  e viver o mundo. O senhor Celestino, responsável da biblioteca itinerante da Gulbenkian,  tinha as suas dúvidas acerca da bondade da leitura. Recebia-nos de ar sisudo, não deixava mexer, nem consultar as obras antes de as requisitarmos. Se havia livros “perigosos” na furgoneta, ainda hoje não sei. Nós tínhamos, digo assim, um talhão à medida da nossa idade.
Fui utente da biblioteca andarilha, no início dos anos setenta. A carrinha era acolhida com um certo desprezo pelos mais velhos, pelas razões que aludi. No entanto,  manifestações hostis ao intruso que vinha atormentar os bons costumes da pobre gente –  todos nós eramos pobre gente –  nunca vi.  Mas  os livros são perigosos, é bom não esquecer.  No mesmo concelho de Vieira do Minho, numa outra freguesia, o bibliotecário da carrinha da Gulbenkian era o poeta António José Forte e ficou deveras impressionado com a receção inaugural.
Corria o ano de 1960, em “marcha feliz e entusiástica” por terra do baixo Minho, o furgão carregado de palavras estacionava pela primeira vez em Parada do Bouro. O padre, muito “zeloso das suas ovelhas”, saiu à rua e ameaçou os fiéis de excomunhão, “caso ousassem levar” um único livro que fosse para casa. “Não contente com esta ameaça, arrancou das mãos de alguns leitores as obras já requisitadas e atirou-as ao chão que, por sinal, estava um pouco enlameado”. Ao padre, entretanto, juntaram-se alguns homens que, de regresso do trabalho nos campos, “traziam ao ombro uma sachola de cabo bastante comprido”.
O episódio, verdadeiro, descreve-o António José Forte em carta dirigida à direção dos Serviços da Gulbenkian. Como o cabo das sacholas impunha respeito, a biblioteca itinerante dá a volta  e abandona o local  com o seu material impuro. O bibliotecário promete voltar no mês seguinte: acompanhado pela GNR. Ou, em alternativa, pedia na carta, que “nos enviem armas”, de Lisboa.
Para o antigo pároco de Parada do Bouro, a leitura não fazia bem.  Alarmava as pobres almas transidas.  Desconheço se António José Forte cumpriu a promessa de regressar,  escoltado ou armado, a essa terra conhecida pela doçura das suas laranjas. Na minha aldeia, Rossas, a carrinha da Gulbenkian manteve o serviço, sem incidentes, até se extinguir, depois de Abril. Partiu a carrinha dos sonhos, e a aldeia ficava privada dos livros, de uma biblioteca comum. Quem ganhou as eleições da junta, e por lá ficou uma quase eternidade, não vislumbrava, também,  qualquer utilidade nessa coisa dos livros. Só nos anos noventa, com a histórica eleição de um antigo utente da carrinha do senhor Celestino, a  minha terra abria a sua  biblioteca pública. Ler faz bem, mesmo quando as palavras nos trazem a melancolia. Por isso,  porque os livros nos permitem olhar o longe, apoiei com o pouco que pude e muito entusiasmo tal iniciativa.
Insisto: Ler faz bem? Os livros mudam o mundo, ou mudam-nos a nós para nós mudarmos o mundo?
No ano de 1931, seis décadas antes da abertura da pequena biblioteca de Rossas, Federico García Lorca inaugura a biblioteca pública da sua aldeia. Na alocução ao povo de Fuentevaqueros, Lorca afirma: “Nunca tenho um livro, porque ofereço todos os que compro, que são infinitos, e por isso me sinto honrado e contente por inaugurar esta biblioteca da aldeia, seguramente a primeira em toda a província de Granada”.
O poeta, fuzilado poucos anos  depois, durante a Guerra Civil de Espanha, pelos fascistas, confessa aos  conterrâneos: se tivesse fome e estivesse “desvalido na rua”, não pediria um pão: “pediria meio pão e um livro”.
“ Livros! Livros! Aqui está uma palavra mágica”,  anuncia Lorca,  “que equivale a dizer: “amor, amor”, e que as aldeias deviam pedir como pedem pão ou como anseiam pela chuva para as suas sementeiras” (3).
A leitura, segundo autor de A Casa de Bernarda Alba,  e daí a bibliofobia  de alguns, é o derradeiro alimento: capaz de transformar o homem e a sociedade. A cultura só pode ser usufruída por todos se for um bem comum. Para isso, não basta abrir a porta:  é preciso transpor a porta e saber  colher o que, afinal, está adormecido dentro de nós. As palavras, Lorca sabia-o, as palavras encerram um fogo libertador.
O que pede Ribine, o mujique – do romance A Mãe, de Máximo Gorki – que foi para a cidade e regressa ao campo onde a “fome segue o homem como uma sombra”, onde as pessoas “não vivem, apodrecem numa miséria infindável”?  Diz ele ao amigo Pavel  ( jovem revolucionário que pela leitura espalha a raiz da utopia): “Trago em mim o ultraje feito às pessoas e pelas pessoas. Está-me cravado no coração como um punhal (…) Ajuda-me! Dá-me livros, daqueles  que um homem, depois de lê-los, não encontre sossego. É preciso meter-lhes um ouriço debaixo do crânio, um ouriço com espinhos aguçados! Diz à tua gente da cidade, que escreva para vocês, que escreva também para o campo! Que o façam de tal maneira que o campo ferva como pez, que o povo se lance na luta para a vida e para morte!”(4).
Hitler , numa das primeiras medidas que toma, recupera a prática da Inquisição: manda queimar milhares de livros e cremar, mais tarde, muitos dos  leitores. No poema  A Queima dos Livros,  Bertolt Brecht lembra esse crime praticado em Berlim, em 1933,  dois anos depois de García Lorca, maravilhado, inaugurar a biblioteca na sua aldeia.
Quando o Regime ordenou que queimassem em público
Os livros de saber nocivo, e por toda a parte
Os bois foram forçados a puxar carroças
Carregadas de livros para a fogueira, um poeta
Expulso, um dos melhores, ao estudar a lista
Dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
Livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária
Alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não me façais isso! Não me deixeis de fora! Não disse eu
Sempre a verdade nos meus livros? E agora
Tratais-me como um mentiroso! Ordeno-vos:
Queimai-me! (5)
Os livros não são artefactos decorativos. Ler faz bem, digo eu que fui leitor mediado apenas no tempo do senhor Celestino. O  cardume, vasto, cada vez mais vasto, anda por aí:  que cada um escolha, ou não, o desassossego.
*
Árvore, 27 de novembro de 2014
*
notas
1 O Prazer da Leitura, Lenha Verde, ed. Teodolito/Fnac, 2013
2 Arte Poética, Horácio; Clássica Editora
(3) Alocução ao Povo de Fuentevaqueros, ed. sector intelectual do Porto do PCP
(4). A Mãe. Máximo Gorki, ed. Caminho
(5) Poemas e Canções, Bertolt Brecht, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, ed. Livaria Almedina

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

[romã]

Granada a clara, que seca roupa
ao luar, romã entreaberta
que sangra e chora
(pela boca da ferida) o seu poeta.





Jean Cocteau

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Madrid, Julho de 1936

À minha frente está o homem sentado. Veste um casaco branco. Na mesa vejo uma garrafa, um copo; a mão esquerda do homem sobre o braço da cadeira. A legenda diz-me: Madrid, Julho de 1936. Por detrás do homem, ao fundo, como numa natureza morta, outro homem fixa o rosto na posteridade. Mas o olhar e o sorriso breve do homem do casaco branco, em pose, alagam a cena. O brilho tímido dos olhos de animal acossado. A garrafa, o copo, a mão no braço da cadeira, a brancura do casaco, o rosto do outro homem ao fundo, o café, todo o café, diluem-se na timidez deste olhar premonitório. De vítima. Preciso de iludir esses olhos, perscrutam-me quando olho a fotografia. Preciso de iludir os olhos: só assim, sem agitar a natureza morta, poderei entrar no mês de Julho de mil novecentos e trinta e seis.
Selecciono um ponto preciso: a mão; a mão esquerda do homem do casaco branco. A fotografia observada desta forma precária, eu sei, perde o equilíbrio. Mas abre-me uma porta (uma janela?). Ao lado da mão, vejo agora uma cadeira vazia. É este o meu exíguo espaço na natureza morta. Entro na foto; sento-me na cadeira vazia, reservada para mim há muitos anos.
O homem do casaco branco não se apercebe da companhia. Mantém o olhar, levemente teatralizado, na direcção da objectiva – como se o fotógrafo estivesse ainda ali. Movo o olhar em redor: a mesma serenidade como quando, há pouco, observava a fotografia do lado de fora.
Como restituir a vida à natureza morta?
Com as palavras, diz-me o homem do casaco branco. E, de repente, abjura o rigor da pose; observa, minucioso, o meu espanto. Bem vindo. A sua mão direita, submersa na foto, emerge devagar: cumprimentamo-nos. Os franquistas vão matar-me no próximo mês de Agosto. Sabias? Não é esse episódio, decerto, que até aqui te traz. Ninguém profana o silêncio de uma fotografia para inquirir a morte. A minha pobre morte. Estás a ver: as palavras devolvem a vida, o movimento - a natureza morta (de que fazemos parte) ilumina-se como uma romã. O homem ao fundo faz um gesto, quase imperceptível, para o empregado (que só agora caminha na foto). Deposita na mesa a moeda; não a vejo, ouço-lhe o som a ressurtir do tampo. Ruído acintoso, comprovativo. Levanta-se, sai de cena. Não o sigo. Atravessará a rua deserta, creio, que cede claridade à fotografia. Não o persigo com os olhos.
Procuro nos bolsos do blusão o gravador; quero-o na mesa, ao lado da garrafa. É impossível prender o silêncio, diz-me o homem do casaco branco. Talvez tenha razão. Devolvo à clandestinidade do bolso o objecto. E para que serve o teatro? Esta a dúvida, afinal, que me levou a ocupar a cadeira vazia como quem entra em casa estranha pela janela. Antes de responder, permite-me duas observações. O meu sorriso é silvestre (já o disse noutra entrevista). Segundo: brilho tímido acha-se nos olhos de gente resignada. Eu sou, tu o disseste, um animal acossado. Sabes porquê? Fico do lado dos que não têm nada; ajudo-os a espavorir a resignação. Ora cá está: o teatro descativa, transforma os sentimentos. Eu sei, tu és do futuro. Sentaste-te na minha mesa, no preto e branco da foto, e não és deste tempo. As minhas arcaicas palavras podem (a)parecer inapreensíveis. Se habitasse o teu tempo, diria o mesmo. Faria o mesmo. Tirania como a de Bernarda Alba (era capaz de se sentar em cima do teu coração e ficar um ano a ver-te morrer...) continua no teu tempo. Adela, a jovem Adela, deixou irmãs em toda a parte, e nenhuma pisou ainda o caminho da felicidade. A busca da felicidade, imprevisto companheiro, é o acto mais revolucionário da História .
Desiludo-te, eu sei. Quando entraste na fotografia, julgaste que terias a entrevista da tua vida. Mais ou menos assim: o medo da morte (lembro: vou ser fuzilado em Agosto de trinta e seis) fez recuar este homem. Renegará os ideais libertários para sobreviver. Não, não traio. Portador de fogo, enfim, o meu destino. Tu sabes, vou morrer. Os livros ficam, as personagens darão de beber à minha voz. Os meus livros, os livros dos outros. Porque tudo vem nos livros, companheiro imprevisto: os avanços sociais, as revoluções... As palavras que acabas de ouvir, disse-as há quatro anos ao povo de minha aldeia, Fuentevaqueros, na inauguração da biblioteca pública. Os livros. Os olhares resignadas não povoam o mundo dos livros.
O empregado de mesa vem na nossa direcção. Deve trazer um copo para mim. Um copo vazio. Ninguém lho pediu, é certo... e eu não posso beber no passado. Aproxima-se, em passo solene: não é um copo que equilibra na bandeja, são lírios!
Por que precipitas o fim? Uma bandeja de lírios a entrar na foto, na cena morta e iluminada, é uma imagem bonita. Mas, caso tivesses observado bem a fotografia, acharias um segundo copo na mesa. Sempre aqui esteve aqui, na natureza morta. Não respondi à pergunta que te fez entrar por uma janela em casa estranha. Não disse tudo, e tu, ao ouvires falar do poder das palavras, quiseste a perfumar a cena. No palco, o poder da palavra é mais forte! Verdadeiro. As personagens que dormitam nos livros, recuperam a voz, os gestos, geram o rosto de quem as diz. Ouve: o fascínio do teatro é esta transumância irreal. Demoníaca transumância, ciciam os franquistas enquanto premeditam a cilada . Porque as personagens – cabiam há pouco num livro de bolso – viajam agora numa carrinha, ou na carruagem do comboio, e vão de povo em povo, de terra em terra, espevitar a rebeldia. Então, o teatro, escola do pranto e do riso, é também uma tribuna livre onde os homens podem ridicularizar morais velhas ou equívocas.
Desiludo-te, não é?
Tu conheces as palavras, a fraqueza das minhas palavras, feridas como veados. Mais tarde ou mais cedo, ouve, na lama dos dias, o homem volta a desenhar o caminho. O teatro vai ajudar essa borrasca. Agora pode entrar em cena, na fotografia de Julho de mil novecentos e trinta e seis, a gabela de lírios na bandeja.
A um poeta nada se recusa. Deseja o silêncio, terá o silêncio. Levanto-me, devagar. A mão esquerda do homem do casado branco pousa no braço da cadeira; a outra imerge na sombra. Dou um passo. Apenas um passo. Desabito a natureza morta.
Do lado de fora, do lado do público, lanço olhar derradeiro. O homem ao fundo voltou à mesa. Olha, cabeça levemente inclinada, o homem do casaco branco. Este cativa, para sempre, o sorriso silvestre. Só o brilho tímido dos seus olhos perturba a serenidade. O olhar de homem acossado. De vítima. Como libertar-me dos seus olhos?
É simples, fecho o livro.