sexta-feira, 8 de outubro de 2010
As mãos, a alma
A decrepitude atirou-os para o armazém do Farrapeiro de S. Vicente de Paulo. Eles que foram moda – a moda – chegavam ao fim. Nus e resignados, silenciosos como árvores. Como velhos sozinhos. Alguns amputados no corpo, todos eles vazios de alma. Personagens sem nome na aluvião do devoluto. Do que foi vida e, graças a generosidade arcaica (será caridade?), se liberta do lixo. De ser resíduo sólido. Os manequins aportaram ali, cediam uma réstia de alvura à obscuridade do lugar. Entre camas e televisores a preto e branco, entre cadeiras de rodas e brinquedos, enxergas e discos de vinil. Livros, os livros, silenciosos também como bicho-de-conta, encontram-se ao fundo, quase emparedados por enormes guarda-fatos expulsos de casas de harmonioso pé direito. E foi uma visita aos livros, cansados e com marca de posse, seja o primeiro tomo das Obras Escolhidas de Lenine ou as Reflexões sobre a Graça, de Charles Journet, que permitiu o inesperado encontro com a despojada família. O negócio fez-se no momento; no dia seguinte, os manequins iluminavam, com a sua tímida presença, o único espaço habitável da sede da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto – também ela, nessa altura, de alma magoada, entontecida pelo burburinho das pombas.
Resgatados da aluvião do devoluto, quedaram, contudo, no mesmo melancólico silêncio. O corpo é o lugar onde a “alma se exila” na sua passagem terrena, por isso os crentes vêem a morte como “dádiva” singular. Mas os manequins estavam mortos e de alma nunca fruíram – o seu corpo sempre foi corpo desabitado. De vida careciam, de suave luz interior: uma listra negra colada em redor dos ombros, pedaço de jornal a agasalhar a nudez, pingos de tinta como chuva colorida no rosto. A mão, as mãos, o gesto. A arte. E eis as distantes criaturas tocadas pelas paixões da alma. De súbito, cheias de indecência e de pudor. Sedutoras e fugidias como seres marinhos. Dóceis como palavras humildes. Esta prodigiosa transmutação (o quase-lixo vira obra de arte) deve-se a Jaime Isidoro, Armando Alves, Acácio Carvalho, Alberto Péssimo, Fernando Lanhas, José Emídio, José Rodrigues, Manuela Bronze e Roberto Machado. Foram eles, num gesto solidário a vários níveis, que reinventaram a alma, múltipla e a cores. Ao grupo junta-se outro nome: Augusto Baptista. Para que dúvidas não restem, com engenho e rigor, fixou alguns momentos do momento criativo. E, mais do que isso, as suas fotografias mostram-nos o diálogo do criador e da criatura, da criatura e do criador. Idioma pleno de silêncios, mas límpido, perceptível como árvore florida. A mão, as mãos, muitas mãos: eis os manequins transfigurados. Eis os manequins com alma, à procura de novo abrigo – não podia encerrar aqui a inesperada aventura.
As mãos, a alma termina, no dia 23 de Outubro, com o leilão das obras de arte. Os manequins, já se disse, saíram da aluvião do devoluto: merecem pois um lugar limpo, sem mácula. A verba proveniente da iniciativa será aplicada nas obras da segunda fase da requalificação do edifício-sede da nossa Instituição, que esperamos iniciar em breve.
Antigo dirigente da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Jaime Isidoro aceitou sem a mais leve das hesitações participar, graciosamente, como todos os restantes artistas, neste projecto. Deu alma, bem luminosa, a um dos manequins. Entretanto, partiu. Está presente a obra, ele por certo não virá. As mãos, a alma é também tributo, uma sentida homenagem a Jaime Isidoro. De pequenas dádivas de constroem os grandes sonhos.
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