terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Palavras para uma fotografia
O homem irado enxota a memória. É como uma árvore a preto e branco. Entenda-se: uma árvore a preto e branco não tem claridade, assusta. Como a fúria encenada deste homem. Parece fardado, parece um militar. A ira, no entanto, rouba-lhe a autoridade. E nada, nada existe mais perigoso do que um fardado destituído de poder: é capaz de tudo: de disparar pelas costas, de te perseguir em contramão na auto-estrada. Os homens irados, volto a dizer, flagelam a memória. Vê como este homem e sua farda verde emergem da noite. Não, não é a chave (inglesa?), quase tridente de gladiador, nem a mão garra de rapina, que te cativa, que te assombra. A fúria do homem habita-lhe os olhos: esferas de fogo prestes a explodir. Mas, repara bem, a boca, em forma de estertor de peixe, esbate a perspectiva de violência. O homem fardado, afinal, tem medo. Observa de novo: a garra de rapina, a chave (inglesa?) na mão, agora como se fosse lasca de sílex, o mesmo olhar gaseado (esquece a farda). Um homem predador surde, entre a coragem e o medo, contra a manada de auroques: se tresmalha um, precipita-se no desfiladeiro rochoso. Quem porfia na encenação da fúria mata caça. Ele regressa à tribo: traz as mãos ensanguentadas e um pedaço do boi esquartejado a golpes de pedra afiada. O troféu sacia a fome da comunidade nómada, e o caçador ascende na hierarquia social – sabe tirar proveito do medo dos outros animais, será o chefe. Aqui, o homem irado, não esbanja a memória: começa a sedimentá-la no vagar de aluvião. Não é isso que vês no homem: a brancura da sigla na roupa anula a ideia de farda. Ele é um paisano, um não militar, falso troglodita. Encena a fúria, como sabes. A ira toda, a insânia a estralejar nos olhos, boca de peixe a engolir a morte. Observa a mão que segura a chave: antes foi arma de reciário apontada a transido gladiador caído na arena, depois lasca de sílex. Afinal, é pormenor inofensivo. Ninguém, que pretenda atacar o outro, empunha a chave desta maneira, ao arrepio das leis da física, como quem segura a faca pelo gume. Lentamente, como uma árvore, ele retoma a memória: a luz é mais forte do que a noite.
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