Houve um golpe de estado, disse a mãe. Eu não sabia o que era um golpe de estado. Mas sabia quando a mãe estava preocupada, quando fugia com o olhar dos nossos olhos. A esconder a tristeza, como se fosse possível cegar a tristeza… Nesse fim de manhã, era um rapaz feliz: tinha pescado uma truta. Descemos ao rio antes do sol nascer; as ervas e os ramos dos arbustos vergavam ainda de humidade – o brilho da noite que devagar se dissolvia na nossa roupa. Iludir as trutas é arte de pescador a sério: com galochas, cacifo de vime, licença de pesca no bolso do blusão verde, cigarro aceso depois de descravar o anzol das guelras da presa. Nessa manhã – eu e quatro companheiros – éramos pescadores furtivos. Em sobressalto. E eu pesquei a truta, no desfazer da corrente!
Por instantes, creio, a natureza parou. Envolvia-me, em silêncio, com esse olhar verde e húmido de manhã primaveril. Só o meu coração recusava amainar (como pode um adolescente reprimir o coração?).E os outros rapazes atravessaram o rio, compreensível inveja agachada por detrás dos sorrisos (desses sorrisos de romã madura); e vieram contemplar o peixe das pintas vermelhas. E eu, predador generoso, permiti-lhes que vissem a truta na palma da mão.
Quando cheguei a casa, trazia um saco de plástico (furtivo não usa cacifo de vime) cheio de felicidade e a truta maior do mundo. A maior do mundo! Houve um golpe de estado, disse a mãe. Fiquei em silêncio, aturdido, a olhar a mãe tecendo a estranha tormenta. Quando pousou o auscultador negro, a mãe parecia mais leve. Caiu o fascismo, disse, sem ponto de exclamação, a mãe. Eu sorri, porque uma réstia de felicidade, da minha felicidade, evadiu-se do saco de plástico e entrou nos olhos da mãe.
Caiu o fascismo, repeti na escola. Houve um golpe de estado. E os meus colegas, incluindo os companheiros de pesca, olharam-me, atónitos – como se eu estivesse a afrontar a professora. Caiu o fascismo, disse com mais coragem, porque guardava no bolso o brilho dos olhos da mãe,
E tu sabes o que é o fascismo?
A voz ecoou na sala, fisgada imprevista. Estremeci. Os olhos dos colegas abraçados a mim: uns em cúmplice socorro; outros a repastarem a minha dúvida. Houve um golpe de estado, senhora professora, disse, sem ponto de exclamação. No bolso, mão aflita impedia a fuga da felicidade (como se a felicidade fosse um grilo assustado).
Só a meio da tarde, os meus colegas e eu próprio começámos a desvendar o enigma das minhas palavras. A aula de Francês (como se chamava o professor que nos fazia perguntas de dentro da televisão?) foi interrompida abruptamente. E apareceu um militar, podia ser nosso irmão mais velho, e pedia-nos serenidade. Aquele recado, cheguei a pensar, seria para a professora: por demorar a engolir o espanto.
Caiu o fascismo, disse.
Arrumem depressa as vossas coisas, disse a professora, como se forte nevão ameaçasse lá fora.
Mas era já o tempo dos lírios. A estação dos colares que fazíamos com as hastes, floridas, das abróteas. Tenros colares para secretíssimas paixões. Saímos a correr, a pisar um mundo novo. E os meus colegas, só os rapazes, formavam um círculo irrequieto à minha volta. Pesquei uma truta! Sim, deste tamanho,
E tem pintinhas vermelhas?
Caiu o fascismo! Disse com ponto de exclamação. Meti a mão ao bolso e não encontrei a felicidade: luzia nos olhos dos outros rapazes.
O dia em que pesquei a primeira truta (pouco maior do que um dedo…) marca a minha vida.
A nossa vida.
(In O Medo Não Podia Ter Tudo, Augusto Baptista \Francisco Duarte Mangas; ed, Campo das Letras, 1999)
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