sábado, 17 de janeiro de 2009

Mãos na cabeça

Devagar caminhavam, as mãos na cabeça. Viam o fascínio fresco do rio; na lentidão dos olhos adoravam as trutas. Nunca estes homens comeram um peixe. Na Primavera subiam, eles e o gado, ao monte: falavam com as árvores, mascavam bagas azedas. Desciam, no dealbar do Inverno, por caminhos de terra batida. Da margem esquerda do rio, bebiam a limpidez da água para desagasalhar o sono das trutas. Abraçados à noite, endoideciam. Abraçados à noite.

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Pele branca

A menina tinha a pele branca, azuis os olhos. Azuis, como lagos profundos. Pelo Maio, saía da casa em ruínas: ia com as borboletas à caça de aromas. Colhia flores silvestres, oferecia-as aos camponeses. Em troca recebia vinho e sorrisos. Quando nasceste, súbita tempestade destruiu a nossa aldeia. As enxurradas levaram cabeças de gado e de gente. Ano de penúria. Contou-lhe a velha louca, vencedora do dilúvio. Nesse dia, nova borrasca abafou o povoado. Em clamor, os sobreviventes procuraram a menina. E ninguém, e ninguém a viu: como se diluísse no azul profundo dos olhos. A casa em ruínas foi agora recuperada para turismo no espaço rural.


In O Homem do Saco de Cabedal

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