quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Evocação do cantoneiro

Nunca vi ninguém a ler o código de estrada à sombra dos vidoeiros, na berma de via antiga (zelada por cantoneiro que da tosquia dos cedros fazia esculturas). O código de estrada está cheio de mistério. É um livro nebuloso. Da biografia do autor apenas o nome se conhece. O autor do livro do código de estrada, penso às vezes, deve ser pseudónimo de poeta obscuro que recusa entrevistas, evita partilhar a vida com a turba imensa de leitores. O livro do código de estrada, penso às vezes, tem a grandeza de bíblia universal de um culto clandestino: toda a gente o lê, ninguém (concluída a leitura anotada) o exibe na estante. Também eu o li, sem grande proveito, até ao fim. Para escorraçar o enfado, fiz da leitura acto predatório: caçar uma ganchada de gralhas e erros ortográficos, numa octogésima sétima edição revista e actualizada, é troféu extraordinário! Do livro do código de estrada lembro-me do brilho do papel (enjeitava anotações a lápis), e do agente regulador de trânsito. Personagem que do gesto fez palavra poderosa, mas entrou em contramão na história. Idêntico desfecho teve o cantoneiro, que plantava hidranjas e alecrim na borda da estrada – e, com arte, afligia a liberdade dos cedros.

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