Nos lançamentos
dos seus livros no Porto, mesmo não sendo ele apresentador televisivo ou
personagem das revistas cor de rosa, juntava pequenas multidões. E era uma
grande festa. Como nunca renegou a
matriz camponesa, de andarilho silvestre,
do homem bom rente à natureza, a festa terminava, altas horas da noite, com
pão, vinho e presunto. Pão, vinho e presunto
vindos da geografia da infância. Do planalto do Gostofrio, lugar real e
imaginário onde se movem todas as personagens da singular obra literária que
nos deixa.
Num gesto bíblico, Bento da Cruz quando saiu
a primeira vez da aldeia de Peirezes, Montalegre, rumo ao longe, rumo à grande
cidade, antes da curva da estrada, que apaga a imagem primordial, não se voltou para a rever. Seguiu caminho,
levava consigo, resguardado no lugar mais íntimo, esse mundo amargo e
maravilhoso. Inútil, pois, o olhar emocionado de quem se despede. Partiu para
ser monge beneditino, chegaria a noviço, mas trocaria a vida religiosa pela
medicina. A escrita, amante irregular (“só escrevo aos fins-de-semana”), essa,
acompanhá-lo-ia sempre.
Na geografia da infância, a mesma que Frei
Bartolomeu dos Mártires calcorreara em tempos remotos, havia de desenhar o
espaço mítico, exíguo e infinito, capaz de acolher a sua obra ficcional. A partir das terras de
Barroso, Bento da Cruz devolve-nos, em O Lobo Guerrilheiro, a memória da guerrilha galega antifranquista, terminada
a Guerra Civil de Espanha. Conheceu, muito novo, alguns dos “fugidos” à
barbárie franquista, dar-lhe-ia mais tarde a claridade da sua escrita límpida,
áspera e melodiosa. Genuína como o pão, o vinho e o presunto oferecido aos leitores,
trasmontanos e não só, como é evidente, que enchiam o salão nobre do Ateneu
Comercial do Porto, ou outros auditórios mais amplos, nos lançamentos dos
livros. Momento de festa e de partilha desse pequeno mundo que o candidato a
monge haveria de perseverar a vida toda.
No espaço
imaginário da narrativa de Benta da Cruz cabem as memórias dos guerrilheiros
galegos ou o amor entre mulheres. Como o
da Zé e da Lua, duas personagens de Filhas
de Loth, um dos romances mais provocadores, publicado em 1967, sendo
reeditado, várias vezes, a partir dos anos oitenta. Como observara Urbano
Tavares Rodrigues, no prefácio ao livro Contos
do Gostofrio (1973), as origens do ruralismo de Bento da Cruz estão
fundamentadas numa experiência direta, “vivida e observada, no que concerne ao
trabalho, ao amor, à amizade, à ambição, às carência mais duras, em suma à
complexa maranha das relações do homem com a natureza e com os animais.
Relações todas elas fortemente sensualizadas e sobre as quais o autor se coíbe
de lançar um julgamento moral”.
O romance
Planalto em Chamas (1963) marca a sua
estreia. Da longa carreira literária, sempre tolhida pelo ofício diário de
médico, ficam mais de 25 títulos, entre contos, romances, biografia, crónicas,
e trabalhos etnográficos como O Boi do Povo, editado em 2009 pela
Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. “Todos os meus livros
falam das chegas de bois”, da luta entre dois bois em campo aberto. “Era uma
coisa muito característica do Barroso”. Agora – dizia-me numa entrevista em
1989 – “está adulterada, vulgarizaram a chega. Antigamente era uma coisa séria!
Tinha um ritual próprio: os bois eram da povoação, toda a gente da aldeia se
empenhava no seu boi! Agora não; os bois são particulares… praticamente só o
dono do animal pode ficar emocionado e torcer pelo campeão”. Admirava Camilo, um dos autores portugueses que lia “com prazer
e com proveito”. Uma das suas últimas obras foi, precisamente, um ensaio sobre
o autor de Amor de Perdição nas
andanças pelo espaço imaginário de Bento da Cruz, publicado pela Âncora Editora
há dois anos – Camilo Castelo Branco Por
Terras de Barroso e Outros Lugares assim se chama o livro, que assinalou os
50 anos de vida literário do escritor.
Bento
Gonçalves da Cruz nasceu na aldeia de Peirezes, Montalegre, em 1925. Faleceu na
semana passada [25 de agosto], aos 90 anos.
Nos seus livros, vários deles distinguidos, há, como afirmara Urbano
Tavares Rodrigues, “incontestável denúncia da miséria, de todas as misérias, de
uma das mais frustes regiões do nosso país”. A grandeza do autor de O Retábulo das Virgens Loucas não se
fica, todavia, por esse “compromisso radical com a verdade”.
Conheci Bento da Cruz há mais de trinta anos.
O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, sempre espalha marcas por
onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior do escritor, avesso à
efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o
silêncio. Ele foi um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial
do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra e
perdurará, estou certo, nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que
ninguém, o autor de A Loba (Prémio de
Narrativa Galega e Portuguesa, em 1999) cuidou a memória como matéria
perecível. E na memória há palavras privadas de afeto. Precisam de respirar na
página, porque a rapidez do quotidiano padronizado as esquece – e palavra
esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra de Bento da Cruz , sem dúvida, dá abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao olvido – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – surge como uma das dádivas do escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) irrompe como outro dos contributos do autor à nossa Literatura. É a fala genuína do povo, um povo concreto – marcado pela penúria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste.
A obra de Bento da Cruz , sem dúvida, dá abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao olvido – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – surge como uma das dádivas do escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) irrompe como outro dos contributos do autor à nossa Literatura. É a fala genuína do povo, um povo concreto – marcado pela penúria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste.
Um povo, no
entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A
solidariedade dos humildes, da pobre gente, será a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz asseguram essa memória (matéria perecível) do povo de Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo de Barroso que soube acolher os “fugidos”, os refugiados, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. Uma memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, é outro dos legados aos homens do nosso tempo e às gerações do porvir. Os dedos de uma mão chegam para contar os escritores que, antes dele, ousaram atear esse passado sangrento. O autor de Planalto em Chamas não temia a memória, ele conhecera, como já disse, guerrilheiros rojos e outros “fugidos”. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários impedidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz, ao evocar a Guerra Civil de Espanha, trouxe à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar a presença de “bandoleiros” (as autoridades portuguesas e os jornais designavam assim os refugiados de Espanha) era crime, e passagem certa pelas mãos dos torturadores da Pide, da Rua do Heroísmo, no Porto. E houve, por muitas aldeias barrosãs, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, pão, vinho e presunto a esses companheiros transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heroica dignidade das gentes da sua terra, nas décadas de trinta e quarenta do século vinte, Bento da Cruz distinguiu todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade do seu trabalho literário: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos são apátridas. Bento da Cruz foi o escritor do Barroso, um grande escritor português.
Os livros de Bento da Cruz asseguram essa memória (matéria perecível) do povo de Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo de Barroso que soube acolher os “fugidos”, os refugiados, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. Uma memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, é outro dos legados aos homens do nosso tempo e às gerações do porvir. Os dedos de uma mão chegam para contar os escritores que, antes dele, ousaram atear esse passado sangrento. O autor de Planalto em Chamas não temia a memória, ele conhecera, como já disse, guerrilheiros rojos e outros “fugidos”. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários impedidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz, ao evocar a Guerra Civil de Espanha, trouxe à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar a presença de “bandoleiros” (as autoridades portuguesas e os jornais designavam assim os refugiados de Espanha) era crime, e passagem certa pelas mãos dos torturadores da Pide, da Rua do Heroísmo, no Porto. E houve, por muitas aldeias barrosãs, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, pão, vinho e presunto a esses companheiros transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heroica dignidade das gentes da sua terra, nas décadas de trinta e quarenta do século vinte, Bento da Cruz distinguiu todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade do seu trabalho literário: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos são apátridas. Bento da Cruz foi o escritor do Barroso, um grande escritor português.
texto publicado no JL
Sem comentários:
Enviar um comentário