quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O escritor que cuidava a memória



Nos lançamentos dos seus livros no Porto, mesmo não sendo ele apresentador televisivo ou personagem das revistas cor de rosa, juntava pequenas multidões. E era uma grande festa. Como nunca renegou  a matriz  camponesa, de andarilho silvestre, do homem bom rente à natureza, a festa terminava, altas horas da noite, com pão, vinho e presunto.  Pão, vinho e presunto vindos da geografia da infância. Do planalto do Gostofrio, lugar real e imaginário onde se movem todas as personagens da singular obra literária que nos deixa.     
   Num gesto bíblico, Bento da Cruz quando saiu a primeira vez da aldeia de Peirezes, Montalegre, rumo ao longe, rumo à grande cidade, antes da curva da estrada, que apaga a imagem primordial, não  se voltou para a rever. Seguiu caminho, levava consigo, resguardado no lugar mais íntimo, esse mundo amargo e maravilhoso. Inútil, pois, o olhar emocionado de quem se despede. Partiu para ser monge beneditino, chegaria a noviço, mas trocaria a vida religiosa pela medicina. A escrita, amante irregular (“só escrevo aos fins-de-semana”), essa, acompanhá-lo-ia sempre.
    Na geografia da infância, a mesma que Frei Bartolomeu dos Mártires calcorreara em tempos remotos, havia de desenhar o espaço mítico, exíguo e infinito, capaz de acolher  a sua obra ficcional. A partir das terras de Barroso, Bento da Cruz  devolve-nos, em O Lobo Guerrilheiro,  a memória da guerrilha galega antifranquista, terminada a Guerra Civil de Espanha. Conheceu, muito novo, alguns dos “fugidos” à barbárie franquista, dar-lhe-ia mais tarde a claridade da sua escrita límpida, áspera e melodiosa. Genuína como o pão, o vinho e o presunto oferecido aos leitores, trasmontanos e não só, como é evidente, que enchiam o salão nobre do Ateneu Comercial do Porto, ou outros auditórios mais amplos, nos lançamentos dos livros. Momento de festa e de partilha desse pequeno mundo que o candidato a monge haveria de perseverar  a vida toda.
No espaço imaginário da narrativa de Benta da Cruz cabem as memórias dos guerrilheiros galegos ou o amor  entre mulheres. Como o da Zé e da Lua, duas personagens de Filhas de Loth, um dos romances mais provocadores, publicado em 1967, sendo reeditado, várias vezes, a partir dos anos oitenta. Como observara Urbano Tavares Rodrigues, no prefácio ao livro Contos do Gostofrio (1973), as origens do ruralismo de Bento da Cruz estão fundamentadas numa experiência direta, “vivida e observada, no que concerne ao trabalho, ao amor, à amizade, à ambição, às carência mais duras, em suma à complexa maranha das relações do homem com a natureza e com os animais. Relações todas elas fortemente sensualizadas e sobre as quais o autor se coíbe de lançar um julgamento moral”.
   O romance Planalto em Chamas (1963) marca a sua estreia. Da longa carreira literária, sempre tolhida pelo ofício diário de médico, ficam mais de 25 títulos, entre contos, romances, biografia, crónicas, e trabalhos etnográficos como  O Boi do Povo, editado em 2009 pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. “Todos os meus livros falam das chegas de bois”, da luta entre dois bois em campo aberto. “Era uma coisa muito característica do Barroso”. Agora – dizia-me numa entrevista em 1989 – “está adulterada, vulgarizaram a chega. Antigamente era uma coisa séria! Tinha um ritual próprio: os bois eram da povoação, toda a gente da aldeia se empenhava no seu boi! Agora não; os bois são particulares… praticamente só o dono do animal pode ficar emocionado e torcer pelo campeão”. Admirava Camilo,  um dos autores portugueses que lia “com prazer e com proveito”. Uma das suas últimas obras foi, precisamente, um ensaio sobre o autor de Amor de Perdição nas andanças pelo espaço imaginário de Bento da Cruz, publicado pela Âncora Editora há dois anos – Camilo Castelo Branco Por Terras de Barroso e Outros Lugares assim se chama o livro, que assinalou os 50 anos de vida literário do escritor.
Bento Gonçalves da Cruz nasceu na aldeia de Peirezes, Montalegre, em 1925. Faleceu na semana passada [25 de agosto], aos 90 anos.  Nos seus livros, vários deles distinguidos, há, como afirmara Urbano Tavares Rodrigues, “incontestável denúncia da miséria, de todas as misérias, de uma das mais frustes regiões do nosso país”. A grandeza do autor de O Retábulo das Virgens Loucas não se fica, todavia, por esse “compromisso radical com a verdade”.
 Conheci Bento da Cruz há mais de trinta anos. O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, sempre espalha marcas por onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior do escritor, avesso à efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o silêncio. Ele foi um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra e perdurará, estou certo, nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que ninguém, o autor de A Loba (Prémio de Narrativa Galega e Portuguesa, em 1999) cuidou a memória como matéria perecível. E na memória há palavras privadas de afeto. Precisam de respirar na página, porque a rapidez do quotidiano padronizado as esquece – e palavra esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra de Bento da Cruz , sem dúvida, dá abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao olvido – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – surge como uma das dádivas do escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) irrompe como outro dos contributos do autor  à nossa Literatura. É a fala genuína do povo, um povo concreto – marcado pela penúria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste.
Um povo, no entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A solidariedade dos humildes, da pobre gente, será a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz asseguram essa memória (matéria perecível) do povo de Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo de Barroso que soube acolher os “fugidos”, os refugiados, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. Uma memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, é outro dos legados aos homens do nosso tempo e às gerações do porvir. Os dedos de uma mão chegam para contar os escritores que, antes dele, ousaram atear esse passado sangrento. O autor de Planalto em Chamas não temia a memória, ele conhecera, como já disse, guerrilheiros rojos e outros “fugidos”. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários impedidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz, ao evocar a Guerra Civil de Espanha, trouxe à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar a presença de “bandoleiros” (as autoridades portuguesas e os jornais designavam assim os refugiados de Espanha) era crime, e passagem certa pelas mãos dos torturadores da Pide, da Rua do Heroísmo, no Porto. E houve, por muitas aldeias barrosãs, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, pão,  vinho e presunto a esses companheiros transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heroica dignidade das gentes da sua terra, nas décadas de trinta e quarenta do século vinte, Bento da Cruz distinguiu todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade do seu trabalho literário: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos são apátridas. Bento da Cruz foi o escritor do Barroso, um grande escritor português. 
texto publicado no JL

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