domingo, 26 de outubro de 2008

A árvore, fruto e fogo

Que árvore seria Agustina se fosse uma árvore? Penso nisso agora, enquanto escrevo. Nunca antes havia tentado este exercício de aparente despersonificação, este jogo de podador encantado que vê a verdura da folhagem, às vezes flor e a doçura dos frutos, no rosto das pessoas. Porquê Agustina? Que irá, estou certo, sorrir do seu imprevisto exílio no reino vegetal. “Árvore de folha persistente, pelo menos, para impedir as constipações!” – dirá, a fustigar com os finos ramos da ironia o meu desastrado lirismo. Mesmo assim, não pretendo fugir do essencial, do que me fez escrever, em jeito de homenagem, a Agustina Bessa-Luís, sem a tratar por senhora dona, como sempre faço quando nos encontramos. E o essencial é: que árvore seria ela se fosse árvore? A sereníssima carvalha, o robusto freixo, a dócil magnólia branca, a caneleira no seu obscuro mundo de aromas ou uma das espécies importadas pelo Horto do Virtudes, do mestre Marques Loureiro, que alagaram de extravagância jardins do norte de Portugal e alguns da Galiza? As sagradas escrituras talvez me ajudassem a achar a árvore certa, a árvore justa: as sagradas escrituras, à sua maneira, explicam o insondável do mundo. Aos pecadores, o apóstolo S. Judas chamava “árvores do Outono sem raízes”. Agostinho e Ambrósio, entre muitos outros santos, de igual modo gastaram parte do seu piedoso tempo a transmutar para os simples mortais a virtude algures escondida no bosque harmonioso. Afinal, as árvores são como os homens, embora não andem.
Voltemos ao essencial: se tivesse vivido no tempo do Horto das Virtudes, Agustina provavelmente daria nome a variedade de camélia. Não, jamais seria camélia. Desde o primeiro momento, desde a primeira linha, vejo-a árvore de fruto.
Diospireiro.
Diospireiro, eis a árvore.
Divido o fruto, a palavra dióspiro, em duas partes: com deus e o fogo fico, deus e o fogo como a espantosa obra de Agustina.
Pelo Outono, eu sei, do diospireiro esvoaça a folha: a nudez vegetal, contudo, não trará mal ao mundo, nem constipações poéticas à escritora-árvore (só por esta noite). As folhas emigram, digo. Ficam os frutos de fogo a arder pelo Inverno dentro: eles guardam, como a luminosa palavra de Agustina, o segredo mais antigo da terra.

Árvore, 20 de Outubro de 2008

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