quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Mergulhador enamorado

Senta-se na sombra dos choupos. As raparigas diluem Agosto, ardente, no rio. O rapaz sobe à coroa do amieiro. Tudo cessa para o ver, destemido, a declinar a cabeça contra o peito, como ave em busca do sono, a estender os braços, retesados, cegos: a todo o instante, o golpe preciso, exacto, na limpidez da água. O homem do saco de cabedal leva o olhar ao encontro do mergulhador. Indeciso, agora indeciso, no ramo mais alto, adia o gesto, o arrojo, a glória efémera. Uma brisa suave fez bulir as folhas, desinquieta o leve voo das libelinhas, penteia a verdura dos milheirais em redor. O rapaz recolhe devagar os braços, levanta a cabeça. Desce. Sem olhar o rio, desce. O seu silêncio é uma arma branca, gume afiado, degola folhas, os ramos tenros do amieiro.
As raparigas voltam à água, ao riso, desinteressadas da secreta amargura do rapaz. Do mergulhador enamorado, que desaparece por entre as canas do milho, a roupa debaixo do braço; momentos depois regressa vestido. Parte. Nenhuma, e nenhuma rapariga o segue pelos olhos. O homem abre o livro. Adormece, pouco depois, na sombra húmida dos choupos.


O homem do saco de cabedal assiste aos preparativos da festa, no largo. Em Agosto, no mais remoto lugarejo há sempre bocas de altifalantes na copa de árvore inatingível. Ou, se a igreja tiver torre, daí desponta a música. Veio a noite e a noite trouxe a dança. O mergulhador enamorado aproxima-se, traz um lírio na mão, um sorriso nos lábios. Da porta do café, o homem perscruta-lhe o movimento – o passo tímido, coração inquieto. A dança acaba, outra dança se inicia. E o rapaz caminha, caminha por dentro da alegria dos outros. Que paixão esconde atrás do lírio? Detém-se. Olha ao redor, como se fosse um estranho. O homem do saco de cabedal entra no barulho do café, ilude o labirinto de homens que amarfanha o balcão, pede aguardente: um cálice de aguardente, por favor. A mulher detém-se. O seu espanto parece eterno, o homem repete, aguardente, por favor. E estende a nota, não o fossem pensar um louco sem dinheiro. Enche o cálice,
Café?
Obrigado, a aguardente basta.
Enquanto recolhe o troco, diz: Agosto é o primeiro mês do Inverno. Boa noite. Abandona o balcão e o olhar violento dos homens.
De novo no largo, agora mais amplo, despovoado. Olha o relógio, passa da meia-noite, a temível fronteira que afugenta os rurais. Os do café começam a sair, devagar a noite passaja a dignidade da acalmia.
O homem irresoluto, no meio do largo. Regressa ao café, a televisão adormecida; a mulher varre saquetas de açúcar vazias, pontas de cigarro, tampas de refrigerantes que, na curta viagem, riscam o silêncio. A mulher suspende o gesto, encosta a vassoura ao peito. O meu avô também dizia que o Inverno rompe no primeiro dia de Agosto. A sabedoria dos velhos, pensava, só a eles pertencia. O homem do saco de cabedal olha-a (de repente se fez bonita, como a mulher de uma canção da sua juventude). Ela pousa a vassoura, enche dois cálices de aguardente. Bebem de um trago só.
Que secreta paixão esconde o rapaz atrás do lírio?
O homem ingressa na noite, atravessa o largo, depois uma ruela estreita, calceta irregular, sob um arco de latidos. No desfecho da aldeia, no ponto mais escuro da noite, acende um cigarro.




Os choupos. O homem na sombra melancólica dos choupos. É domingo, em breve as raparigas descem ao rio. Ardentes raparigas de Agosto. Do saco retira o livro, e lê lentamente – a melhor forma de afeiçoar o íntimo das palavras. Já a passear por dentro do livro, vê a mulher do balcão, estende toalha branca sob a sombra dos choupos. Uma melancia, agora, uma melancia no centro da toalha: como se ali de propósito fosse posta para dar profundidade à brancura. A mulher senta-se, descuida as pernas, sorriso afectuoso. De súbito, uma navalha, a navalha do mergulhador enamorado, lâmina resplandecente, enquanto caminha. Senta-se, mudo, ao lado da mulher; pega na melancia: dividi-a, gesto geométrico, em duas partes. Pousa metade no centro da toalha; o homem observa a intimidade da melancia (como se lentamente lesse a palavra): as sementes, carraças de brilho, sugam o rubro. Agora descansa o olhar no rosto da mulher: ela cruza a pernas, apaga o sorriso,
Este homem persegue-te. É ele, meu filho!
O rapaz ergue-se, impelido por força brusca: um passo, ríspido, dilacera a melancia.
Uma nódoa trágica alastra na toalha de linho.

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