sexta-feira, 11 de julho de 2008

Cativos na própria casa

A casa está bem arrumada, limpa. Da janela da exígua cozinha vê-se os telhados da Ribeira, ao fundo, um trecho do rio. O gorjeio agreste das gaivotas prenuncia aguaceiro. Irene, que nos recebe com um sorriso, gosta de gaivotas, gosta de gatos, gosta “muito de crianças”. Irene é uma das muitas prisioneiras, cativas na própria casa, no Porto, património mundial.
Vive sozinha, num quarto andar. As duas “operações às artroses” não lhe retiraram a mobilidade: faz limpeza, cozinha, andarilha pela casa. Apenas por dentro da casa. Irene Faria, 84 anos, “há ano e meio” não sai à rua. As pernas, conhecem bem o caminho, mas as “48 escadas”, de madeira rangente, assustam. Agora assustam. “Descer, de vagarinho, podia. Mas subir...”.
Na zona da Ribeira e noutros locais do centro histórico, como Irene, “criada de servir” que aprendeu a falar francês, há dezenas de casos idênticos. Veio a velhice, a casa, o doce lar, virou cárcere. Vivem nos últimos pisos - as rendas aí eram menos tormentosas para gente simples - de prédios antigos, sem elevador. Em grande parte das casas antigas, entretanto recuperadas, o problema subsiste: a arquitectura não permite ou adia-se, por questões de poupança, a instalação do ascensor.
O presidente da Junta de S. Nicolau, freguesia que integra a Ribeira, conhece bem o problema. Jerónimo Ponciano, 73 anos, mora, há décadas, num quinto andar da Rua de Belmonte. Para este beirão, natural da aldeia de Monteperobolso, os “80 degraus” de escadas funcionam ainda como acesso. O mesmo não dirá a sogra, Altina Marques, 93 anos, que reside na mesma casa.
Há situações em que esta espécie de prisão domiciliária, pena a cumprir por gente que comete o crime de envelhecer, não é total. Ana Pinto, 74 anos, vive com um filho doente e dois gatos (a Boneca e Pretinho) nas águas furtadas de prédio de cinco pisos. A escadaria é imensa, a pique. Ana desce uma vez à rua, pela manhã. O resto do dia passa-o em casa a ver televisão, indiferente ao intenso cheiro a urina de felino.
A companhia nocturna de Irene é também a televisão. “Fica ligada a até à meia noite”. Durante o dia, deixa ir o olhar no voo das gaivotas (“vêm comer aqui ao peitoril da janela”), a viagem termina na outra margem do rio, em Gaia, onde trabalhou muito tempo. Da outra janela, da parte da frente, vê a ruela que a levava ao centro da cidade. E os gatos a lamber o sol, no mundo que lhe está vedado.
Uma vez por semana abre a porta a um funcionário do Centro Social Sá Homem, que lhe traz as compras para uns dias. Irene é viúva. O amor tardio com o taxista com quem casou, tinha então 47 anos, não gerou nenhum herdeiro. Uma sobrinha visita-a aos domingos; às vezes a solidão é interrompida com a passagem da assistente social ou do pároco da S. Nicolau e da Vitória. Sempre que é solicitado, padre Jardim Moreira sobe o escadaria de madeira para confessar estes deserdados fiéis.
Na Ribeira e restante geografia de S. Nicolau, segundo os dados do pároco, existem não mais de “900 habitantes”. Quando aqui chegou, em 1968, a população ultrapassava as dez mil almas. Uma parte significativa dos sobreviventes atingiu o patamar da terceira e idade. Moram no 3, 4 e 5 pisos. “Só descendo numa cadeirinha dos bombeiros, senão não saem”, diz padre Jardim. “Isto é o drama de muito gente no centro histórico”.
A privação da rua, da sol, de caminhar pela cidade, mesmo que seja breve o roteiro, agrava a solidão. Outra mazela arrasta a imobilidade, a clausura doméstica: como vivem fechados, o ar não se renova, não se regenera, no espaço habitável. Quase todos sofrem, ou vão sofrer, de problemas respiratórios que precipitam a morte.
Pouco ou quase nada podem fazer. As reformas pequenas não lhe permitem o sonho de mudar para casa menos desumana, e o acesso a lar terceira idade também se afigura difícil. Irene acalenta a esperança de acabar o restos do dias no lar do centro social da paróquia da Vitória.
“Quero ir para o lar para não falar sozinha”. Irene é uma das candidatas aos dez lugares disponível deste equipamento social, “com elevador”, pronto a abrir. “Estamos à espera que a Câmara do Porto passe a licença de habitabilidade”, refere padre Jardim.
Desta vez, como tinha sido avisada de véspera, Irene Faria pediu a um vizinho para nos abrir a porta rua. Nas outras visitas, o chaves voam lá do alto da prédio, embrulhadas num pano de flanela para amortecer a queda no lajedo.


(Publicado no DN)

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