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Os
livros aparecem por acaso. Falo por mim. Esse acaso aplica-se ao Jacarandá, o último; ou a Diário
de Link, o inicial. Um romance ou uma
novela, na sua construção, é como o mais breve poema: há um momento que no vazio,
na escuridão, surge a centelha. Ao certo, esse fragmento de fogo, não sei donde
provem. Esse friccionar de pedras pode ser uma palavra apenas, uma conversa de
café, uma memória incompleta. Ou seja, a
todo o momento pode saltar a faúlha – e a partir daí fica-se preso, a faúlha
há-de ser labareda. Fogo vivo.
Certa
vez, Germano Silva falou-me de uma
brévia num antigo mosteiro, algures na cidade do Porto. Dessa conversa, só uma
palavra guardei. Brévia. Eu desconhecia a palavra, nunca, por certo, a teria ouvido ou lido –
mas, talvez pela proximidade a certas práticas beneditinas, era-me familiar.
Tão familiar como mãe, como casa, como a sombra no verão. A repousante brévia transportava “o mecanismo do
fogo”: em pouco dias, sempre a eito, como os camponeses antigo a evitar o sol
inclemente, escrevi Brévia. Um livrinho de poemas que distribuí por alguns amigos.
Com
o Diário de Link, romance sobre a
aldeia afogada de Vilarinho da Furna, a chispa da pederneira veio numa imagem.
Um irmão meu trabalhava para empresa que construiu a barragem, e realçou a
coragem de um dos habitantes: esse vilarinho recusou sair, ficou só, na sua casa,
enquanto a água do rio impedido pelo paredão subia devagar: a água atingiu o rés do chão, as cortes do
gado, continuaria o movimento ascendente como uma sombra a amarinhar na parede, e descobriu
o homem, Profanou-lhe o espaço. Não sei se foi o resistente a pedir auxílio, ou
se as autoridades tomaram a decisão de o desviar da morte. A imagem que eu
fiquei (na altura teria 11,12 anos), a que guardava o fogo no meio do suave diluvio
foi outra: quando o barco chegou para resgatar o homem, a mesa da cozinha boiava
nas águas. Mesa é uma palavra muito
forte, a tosca mesa de carvalho, onde a família desse pobre vilarinho repartira
a penúria. Anos mais tarde, a imagem da mesa
cativa sobre as águas prisioneiras levar-me-ia à escrita de Diário de Link.
No
final dos anos noventa, Adalberto Sampayo, artista plástico e antigo repórter
gráfico de O Primeiro de Janeiro,
falou-me vagamente da prisão, no Porto, de um grupo de refugiados espanhóis. Quis
saber, abusando da sua memória de velho, mais do episódio. O meu amigo Sampayo
lembrava-se de pouca coisa: teria sido algures nos anos quarenta, e os
espanhóis pertenciam a um grupo clandestino que reunia numa garagem, na Rua de
Santa Catarina. Na mesma rua onde O
Janeiro, num belo palácio, hoje um centro comercial, estava instalado.
Na altura eu estava a preparar um trabalho sobre
os cinquenta anos do massacre a refugiados republicanos da Guerra Civil de
Espanha, praticado pela GNR e pela Guardia Civil, na aldeia de Cambedo, Chaves. Haveria alguma relação entre Demétrio
Alvarez, o único guerrilheiro sobrevivente de Cambedo, e os galegos presos no
Porto? Talvez não. Tempos depois, num alfarrabista da cidade, encontrei Memórias de um Inspector da PIDE, e o
seu autor, Fernando Gouveia, a dada passo, para dar consistência à tese de
diabolização do Partido Comunista, faz emergir o caso dos “bandoleiros
espanhóis” detidos no Porto, e precisa a data: Maio de 1940; num gesto de distanciamento, toma como suas as palavras
do Jornal de Notícias – que destaca
“o misterioso crime” ocorrido na Rua do Bonjardim. A partir daí, consultei as
edições do Jornal de Notícias e do Diário de Notícias da época. E conheci um lado da história: o lado que a
Ditadura permitiu sair, na imprensa, do assassinato do “misógino
intransigente”, assim retrata o JN a
vítima – um velho proprietário e capitalista portuense.
A
centelha irrompe, como disse, quando menos se espera. A sua tradução na escrita
por vezes demora anos. Depois da consulta dos jornais, começava o trabalho do Jacarandá. Ouvi alguns antigos presos
políticos, li as memórias de outros, reli uma das edições do tempo de
clandestinidade de Se Fores Preso,
Camarada, que o Jorge Sarabando me emprestou. A edição que eu li, datada de
1972, e tem como título Não Falar na
Polícia - Dever Revolucionário. Reli “Mi Guerra Civil Española”, de George
Orwell, talvez o mais lúcido dos autores que escreveram, ainda a quente, sobre
o acontecimento. Li (ou já tinha lido)
outras obras relacionadas com a clandestinidade comunista, como Relatos da Clandestinidade – O PCP Visto por
Dentro, de J.A. Silva Marques, que havia sido, descobri mais tarde, do
Jorge Sarabando.
Como
parece ser óbvio, quis consultar o processo
do julgamento do Caso Bonjardim. Os acusados, os três galegos, os irmãos Alvela, mais onze portugueses ligados ou próximos do
Partido Comunista, foram julgados no Tribunal Militar Especial Político, no
Porto, em Março de 1941. O processo deveria repousar no Arquivo Histórico
Militar, em Lisboa. Não se encontrava aí, embora no mesmo arquivo estejam processos anteriores em que aparecem os nomes
de alguns dos acusados do Crime do Bonjardim. Só depois do livro escrito e
publicado soube, através do meu amigo Bruno Monteiro, que, afinal, o processo não estava perdido, ou
agachado em casa particular.
Para espevitar a centelha, verdade seja dita, descarecia
da consulta do processo, as notícias dos
jornais deram-me informação suficiente. Numa obra ficcional, a matéria
informativa ou a falta dela é sempre suficiente. É isso que deveras me
entusiasma na escrita, reinventar uma realidade a partir da palavra. A
linguagem entra no domínio do "indizível" – para usar um vocábulo dos
poetas dos anos oitenta – e partilha essa 'descoberta'.
Para o Jacarandá,
fui
buscar os nomes do inspector da PVDE/ PIDE e de outros torturadores a um antigo
livro da malvadez portuguesa: Peregrinação,
de Fernão Mendes Pinto; no romance A Mãe,
de Máximo Gorki, encontrei os
nomes de outras personagens; outros, por fim, nasceram e cresceram já
baptizados no decorrer do processo criativo. O imaginário jacarandá, que acaba
por dar título à obra, surgiu de forma inesperada – alguma coisa terá
acontecido, mas existem mistérios que ultrapassam o narrador. A ficção faz-se
de muitas pequeninas coisas reais que nós vivemos, que outros viveram e nos
contaram, e de outras que não vivemos e ninguém as terá contado. Como o
Jacarandá, os jornalistas do anos 40 que aparecem no livro, imaginativos (mais
imaginativos creio que os jornalistas de hoje), todos eles são uma invenção.
Personagens reais só os irmãos Alvela, os três galegos, fugidos da Guerra Civil
de Espanha, e no entanto deles apenas conhecia o nome e a pesada condenação que
sofreram.
Chegado
aqui, uma pergunta se impõe: o que me levou a escrever o livro? Ou, para manter
a imagem da centelha, por que soprei nas
cinzas do Crime do Bonjardim? Eu gostava
de perceber o medo, se o medo iria ter tudo o não. Por isso, o medo aparece ao
longo do livro como um animal. Um animal silencioso, um animal indefinido, de
reacção imprevisível. E aqui, para se testar o animal, surge a tortura.
Quando
cheguei à redacção do jornal O Primeiro
de Janeiro, meados dos anos oitenta, contaram-me uma história amarga de um
jornalista mais velho, de quem me tornaria amigo. Ele teria (o teria é meu, quem me informava era afirmativo),
ele teria rachado numa passagem pela
Rua do Heroísmo, pela Pide, e teria
denunciado outro camarada de profissão – até me disseram o nome da “vítima”,
Pedro Alvim. Nunca falei do assunto com o meu amigo, alegado delactor, que era
do PCP e continuava quando o conheci. Ele também nunca aludiu a esse seu
nebuloso passado. Mas vi nele um homem ferido pela amargura.
Que
a animal é o medo?
A
dada altura, em privado, o narrador pergunta: E se fosses tu? Suportarias a tortura,
cumpririas o dever revolucionário de não falar na polícia? O medo, confessa Martí
–, o controleiro nesta história, que rachou
perante o cavalo marinho –, o medo irrompe “animal
dominador. Julguei que o domava, abarbatou-me. O medo é um animal estranho.
Protege e rouba a coragem, no seu lugar, no lugar da coragem, fica o vazio. Sou
o homem mais infeliz à face da terra,
tenho vergonha de estar vivo”.
O
outro camarada, que cumpria o dever revolucionário, suportando os mais duros
suplícios, frente ao ex-controleiro, estando os dois presos na sede da Pide,
pergunta:
“Torturam-te
muito?
Muito.
O medo apossou-se de mim.
E
devorou-te.
Devorou-me,
esse animal silencioso.
Que
deste tu em troca?
A
minha dignidade.”
Este
livro é dedicado a quem ousou afrontar a ditadura. Um pequeno gesto de gratidão
aos que foram brutalmente torturados e não cederam. E também a alguns que não
suportaram a dor e involuntariamente terão traído. O medo, afinal o medo não teve tudo.
Um
jacarandá, mesmo crescendo na parede da
cela, apresenta sempre muito ramos. Falei-vos de um – há outros a descobrir.
* Texto lido na Universidade Popular do Porto, dia 2O de novembro,
no debate "O medo não pode ter tudo" a partir do romance Jacarandá, com a participação de Cristina Nogueira e Bruno Monteiro.
1 comentário:
"E se fosses tu?"
Algo que não gostaria de descobrir... para ser "eu", teria que experimentar.
Só a vivência é que poderia dar uma resposta.
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