Um
leitor imaginado por parte da biblioteca, que encontrei num farrapeiro do
Porto, pensaria assim dos livros. “Fui feliz com alguns, com outros fui leitor.
Parecem gente. Ou árvores. Em certos momentos, são como gente, incendeiam a
mágoa, turvam a água da alegria. Quando assumem o espírito das árvores, este
pequeno andar da cidade, numa rua tímida, é rumorejante bosque”. Do fim de março até o plátano sacudir a
folhas, na casa do leitor imaginado, os livros eram como árvores. “Quantos
cuido, de que tamanho é a floresta? Abstenho-me de o dizer. Por modéstia, que é
doença benigna, abjuro contar os livros. Contá-los, como o pastor soma as reses
do rebanho, tornar-los-ia simples artefactos decorativos” (1).
Os
livros não são artefactos decorativos para o leitor imaginado, nem para mim,
nem para o antigo padre de Parado do Bouro, nem para muita outra gente. Quem
por eles viaja, incendeia a mágoa: abre portas à alegria ou à revolta. Os
livros são perigosos, poderosos, desapiedados; outras vezes, “gado servil”(2)
ou inocentes como sorriso de uma romã. Há
de tudo, portanto, no cardume de múltiplas espécies. O leitor apaixonado, a
princípio, não enjeita nenhum dos peixes. Mais tarde ou mais cedo fará escolhas. Começo a aprender essa arte de leitor: a
ideia de ler todas as obras que vou levando para casa é a mais improvável e
doce das utopias. Ao contrário de certos livros, o sopro da eternidade não
envolve quem lê, o leitor não é eterno como a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, que 400 anos depois continua
a cativar viageiros transitórios da palavra.
O
tema nesta mesa é afirmativo. Ler faz bem. Será assim, com esta candura poética,
entendido por toda a gente?
Eu
nasci numa aldeia, cercada por montes. A primeira vez que vi livros juntos,
cardume razoável, foi no interior de uma carrinha. Em certo dia do mês, a fabulosa carrinha aportava no largo da
aldeia. Nós, os mais jovens, que dos mais velhos poucos sabiam ler, corríamos à
biblioteca itinerante, deslumbrados pelo mistério dos livros: como se através
do encantamento da palavra nos fosse
possível ultrapassar os montes e viver o
mundo. O senhor Celestino, responsável da biblioteca itinerante da Gulbenkian, tinha as suas dúvidas acerca da bondade da
leitura. Recebia-nos de ar sisudo, não deixava mexer, nem consultar as obras
antes de as requisitarmos. Se havia livros “perigosos” na furgoneta, ainda hoje
não sei. Nós tínhamos, digo assim, um talhão à medida da nossa idade.
Fui
utente da biblioteca andarilha, no início dos anos setenta. A carrinha era
acolhida com um certo desprezo pelos mais velhos, pelas razões que aludi. No
entanto, manifestações hostis ao intruso
que vinha atormentar os bons costumes da pobre gente – todos nós eramos pobre gente – nunca vi.
Mas os livros são perigosos, é
bom não esquecer. No mesmo concelho de
Vieira do Minho, numa outra freguesia, o bibliotecário da carrinha da
Gulbenkian era o poeta António José Forte e ficou deveras impressionado com a
receção inaugural.
Corria
o ano de 1960, em “marcha feliz e entusiástica” por terra do baixo Minho, o
furgão carregado de palavras estacionava pela primeira vez em Parada do Bouro.
O padre, muito “zeloso das suas ovelhas”, saiu à rua e ameaçou os fiéis de
excomunhão, “caso ousassem levar” um único livro que fosse para casa. “Não
contente com esta ameaça, arrancou das mãos de alguns leitores as obras já
requisitadas e atirou-as ao chão que, por sinal, estava um pouco enlameado”. Ao
padre, entretanto, juntaram-se alguns homens que, de regresso do trabalho nos
campos, “traziam ao ombro uma sachola de cabo bastante comprido”.
O
episódio, verdadeiro, descreve-o António José Forte em carta dirigida à direção
dos Serviços da Gulbenkian. Como o cabo das sacholas impunha respeito, a
biblioteca itinerante dá a volta e
abandona o local com o seu material
impuro. O bibliotecário promete voltar no mês seguinte: acompanhado pela GNR.
Ou, em alternativa, pedia na carta, que “nos enviem armas”, de Lisboa.
Para
o antigo pároco de Parada do Bouro, a leitura não fazia bem. Alarmava as pobres almas transidas. Desconheço se António José Forte cumpriu a
promessa de regressar, escoltado ou
armado, a essa terra conhecida pela doçura das suas laranjas. Na minha aldeia,
Rossas, a carrinha da Gulbenkian manteve o serviço, sem incidentes, até se
extinguir, depois de Abril. Partiu a carrinha dos sonhos, e a aldeia ficava
privada dos livros, de uma biblioteca comum. Quem ganhou as eleições da junta,
e por lá ficou uma quase eternidade, não vislumbrava, também, qualquer utilidade nessa coisa dos livros. Só
nos anos noventa, com a histórica eleição de um antigo utente da carrinha do
senhor Celestino, a minha terra abria a
sua biblioteca pública. Ler faz bem,
mesmo quando as palavras nos trazem a melancolia. Por isso, porque os livros nos permitem olhar o longe,
apoiei com o pouco que pude e muito entusiasmo tal iniciativa.
Insisto:
Ler faz bem? Os livros mudam o mundo, ou mudam-nos a nós para nós mudarmos o
mundo?
No
ano de 1931, seis décadas antes da abertura da pequena biblioteca de Rossas,
Federico García Lorca inaugura a biblioteca pública da sua aldeia. Na alocução
ao povo de Fuentevaqueros, Lorca afirma: “Nunca tenho um livro, porque ofereço
todos os que compro, que são infinitos, e por isso me sinto honrado e contente
por inaugurar esta biblioteca da aldeia, seguramente a primeira em toda a província
de Granada”.
O
poeta, fuzilado poucos anos depois,
durante a Guerra Civil de Espanha, pelos fascistas, confessa aos conterrâneos: se tivesse fome e estivesse
“desvalido na rua”, não pediria um pão: “pediria meio pão e um livro”.
“
Livros! Livros! Aqui está uma palavra mágica”,
anuncia Lorca, “que equivale a
dizer: “amor, amor”, e que as aldeias deviam pedir como pedem pão ou como
anseiam pela chuva para as suas sementeiras” (3).
A
leitura, segundo autor de A Casa de
Bernarda Alba, e daí a bibliofobia de alguns, é o derradeiro alimento: capaz de
transformar o homem e a sociedade. A cultura só pode ser usufruída por todos se
for um bem comum. Para isso, não basta abrir a porta: é preciso transpor a porta e saber colher o que, afinal, está adormecido dentro
de nós. As palavras, Lorca sabia-o, as palavras encerram um fogo libertador.
O
que pede Ribine, o mujique – do romance A
Mãe, de Máximo Gorki – que foi para a cidade e regressa ao campo onde a
“fome segue o homem como uma sombra”, onde as pessoas “não vivem, apodrecem
numa miséria infindável”? Diz ele ao
amigo Pavel ( jovem revolucionário que
pela leitura espalha a raiz da utopia): “Trago em mim o ultraje feito às
pessoas e pelas pessoas. Está-me cravado no coração como um punhal (…)
Ajuda-me! Dá-me livros, daqueles que um
homem, depois de lê-los, não encontre sossego. É preciso meter-lhes um ouriço
debaixo do crânio, um ouriço com espinhos aguçados! Diz à tua gente da cidade,
que escreva para vocês, que escreva também para o campo! Que o façam de tal
maneira que o campo ferva como pez, que o povo se lance na luta para a vida e
para morte!”(4).
Hitler
, numa das primeiras medidas que toma, recupera a prática da Inquisição: manda
queimar milhares de livros e cremar, mais tarde, muitos dos leitores. No poema A Queima
dos Livros, Bertolt Brecht lembra
esse crime praticado em Berlim, em 1933, dois anos depois de García Lorca, maravilhado,
inaugurar a biblioteca na sua aldeia.
Quando o Regime ordenou
que queimassem em público
Os livros de saber
nocivo, e por toda a parte
Os bois foram forçados
a puxar carroças
Carregadas de livros
para a fogueira, um poeta
Expulso, um dos
melhores, ao estudar a lista
Dos queimados,
descobriu, horrorizado, que os seus
Livros tinham sido
esquecidos. Correu para a secretária
Alado de cólera e
escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! escreveu
com pena veloz, queimai-me!
Não me façais isso! Não
me deixeis de fora! Não disse eu
Sempre a verdade nos
meus livros? E agora
Tratais-me como um
mentiroso! Ordeno-vos:
Queimai-me! (5)
Os
livros não são artefactos decorativos. Ler faz bem, digo eu que fui leitor
mediado apenas no tempo do senhor Celestino. O
cardume, vasto, cada vez mais vasto, anda por aí: que cada um escolha, ou não, o desassossego.
*
Árvore, 27 de novembro
de 2014
*
notas
1
O Prazer da Leitura, Lenha Verde, ed.
Teodolito/Fnac, 2013
2
Arte Poética, Horácio; Clássica Editora
(3)
Alocução ao Povo de Fuentevaqueros, ed. sector intelectual do Porto do PCP
(4).
A Mãe. Máximo Gorki, ed. Caminho
(5)
Poemas e Canções, Bertolt Brecht, selecção e versão portuguesa de Paulo
Quintela, ed. Livaria Almedina
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