A cidade
faz-se bosque. O homem caminha, cada vez mais só, inaudita viagem: circula, segue
à procura da árvore mais próxima. Por vezes, ele não repete no mesmo dia o
movimento em redor da mesma árvore, o
círculo seguinte fica a uma boa soma de metros. Tudo tem um começo. Pela manhã,
desliza no olho magnético o cartão de controlo que solta o torniquete da passagem.
“Não é preciso: o posto de trabalho foi extinto”. Olha o segurança, jovem
musculado, voz simpática, tatuagem que a moda incentiva. No braço esquerdo do homem,
encoberta pela roupa, uma tatuagem também. Patriótica, a princípio. Depois,
estorvo, ferrete. Estigma. Nunca mais, mesmo quando conhecia o dinheiro pelos
dedos, permitiu férias na praia.
Andar à
volta das árvores no espaço público, se assumido como ofício, carece de algumas
regras. Coisa pouca. Nas de tronco robusto, são dois os círculos, no sentido da
esquerda para a direita. Quando a árvore é singela de tronco, por artes da
natureza ou da idade, um círculo basta e o sentido é arbitrário. É uma excelente ocupação do tempo. Entusiasma-se
e, dir-se-á, se arrepende da descoberta. Sua vida vira do avesso.
No centro de
emprego, logo à entrada, expõe o problema ao segurança que faz a triagem: “Ah,
você é dos de longa duração. Segundo andar, preenche o formulário”. Sobe as
escadas, dois andares apenas e vê-se cansado, bruscamente exausto. Um pouco entontecido
pela caminhada sem os passos em volta. Ainda pensa sentar-se, há mais gente,
daria má imagem dos viandantes do bosque. Aguarda a vez, de pé. As pessoas,
entretanto atendidas, debandam cabisbaixas, escondendo os olhos, desapegados de
espanto. A sua gestora de carreira no centro de emprego, antes de ouvir o caso
concreto, esclarece: “A Nova História é a grande responsável da longa duração”.
Andei na guerra, na mata. Não é justo. “Não é justo o quê?” Não é justo ocupar
o tempo. “Até ao século XII, o tempo era tido como bem divino. Por esse motivo,
a cristandade condenava a usura”. Se não acredita em mim, mostro a tatuagem.
Muitos dos meus camaradas, sobre a legenda amor
de pais, tatuaram coração trespassado por seta. Eu preferi, sei lá se
preferi… A mim, após noite muito cervejada de lerpa, picaram o mapa de Angola no ombro. “Se não ocupa o tempo, o que faz?”
Ando à volta das árvores: a menina não imagina o que é andar em volta de um
choupo alto num dia de ventania. Se tem folha, o vento emaranha-se nas
nervuras, amansa a rebeldia no limbo, e daí se evola agradável sonoridade.
Outra coisa é no Inverno, o vento tresmalha-se no labirinto dos ramos despidos:
e dessa harpa primitiva irrompe um silvo, um uivo imenso de alcateia alada.
“Mas isso parece-me criativa e económica forma de ocupar o tempo! Vou
aconselhá-la a outros clientes. Vê as notícias na televisão? O pior, o pior
passou: resgate limpo!” Eu fui à guerra, tatuei a guerra no corpo, se quiser…
Ocupar o tempo é a pior das servidões. Conhece a imagem: carregar água com a
peneira? Pois na minha maneira de ver, a ocupação do tempo se perfila no mesmo
domínio do desumanamente intolerável.
O homem
desde as escadas, para em frente do segurança. “A doutora gestora resolveu a
sua situação laboral?”, salta a pergunta
de retórica. Ele é segurança, da geração da tatuagem despenalizada; aparta
desempregados, como rês atordoada, pelo tempo de pousio. Escasso número
de palavras usa na sua função. “Bom dia”, “segundo andar”, “tenha paciência”… E
quem entra desiludido, vê as tatuagens floridas, preenche o formulário,
regressa corcovado de desespanto – fragmento ínfimo de estatística manipulada.
O homem diz, estamos em guerra e não sabemos ao certo quem é o inimigo. Os
nossos medos tolhem-nos, a fome de deslumbramento, e a outra, resigna-nos.
Andamos em guerra dentro de cada um e com toda a gente. Onde foi que o meu
amigo fez esse cacho de tatuagens? Na outra guerra, as tatuagens eram
diferentes, neo-realistas como os sonhos, como os receios. O meu amigo alguma
vez ousou sonhar como os neo-realistas? “Não o entendo. Eu trabalho, vejo
televisão: e adormeço”.
*
O Medo Não Podia Ter Tudo
Augusto Baptista e Francisco Duarte Mangas
edição da Associação dos Jornalistas
e Homens de Letras do Porto, 2014
Col. Memória Perecível
Sem comentários:
Enviar um comentário