segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ocupação do tempo







 A cidade faz-se bosque. O homem caminha, cada vez mais só, inaudita viagem: circula, segue à procura da árvore mais próxima. Por vezes, ele não repete no mesmo dia o movimento em redor da mesma  árvore, o círculo seguinte fica a uma boa soma de metros. Tudo tem um começo. Pela manhã, desliza no olho magnético o cartão de controlo que solta o torniquete da passagem. “Não é preciso: o posto de trabalho foi extinto”. Olha o segurança, jovem musculado, voz simpática, tatuagem que a moda  incentiva. No braço esquerdo do homem, encoberta pela roupa, uma tatuagem também. Patriótica, a princípio. Depois, estorvo, ferrete. Estigma. Nunca mais, mesmo quando conhecia o dinheiro pelos dedos, permitiu férias na praia.
Andar à volta das árvores no espaço público, se assumido como ofício, carece de algumas regras. Coisa pouca. Nas de tronco robusto, são dois os círculos, no sentido da esquerda para a direita. Quando a árvore é singela de tronco, por artes da natureza ou da idade, um círculo basta e o sentido é arbitrário. É uma excelente ocupação do tempo. Entusiasma-se e, dir-se-á, se arrepende da descoberta. Sua vida vira do avesso.
No centro de emprego, logo à entrada, expõe o problema ao segurança que faz a triagem: “Ah, você é dos de longa duração. Segundo andar, preenche o formulário”. Sobe as escadas, dois andares apenas e vê-se cansado, bruscamente exausto. Um pouco entontecido pela caminhada sem os passos em volta. Ainda pensa sentar-se, há mais gente, daria má imagem dos viandantes do bosque. Aguarda a vez, de pé. As pessoas, entretanto atendidas, debandam cabisbaixas, escondendo os olhos, desapegados de espanto. A sua gestora de carreira no centro de emprego, antes de ouvir o caso concreto, esclarece: “A Nova História é a grande responsável da longa duração”. Andei na guerra, na mata. Não é justo. “Não é justo o quê?” Não é justo ocupar o tempo. “Até ao século XII, o tempo era tido como bem divino. Por esse motivo, a cristandade condenava a usura”. Se não acredita em mim, mostro a tatuagem. Muitos dos meus camaradas, sobre a legenda amor de pais, tatuaram coração trespassado por seta. Eu preferi, sei lá se preferi… A mim, após noite muito cervejada de lerpa,  picaram o mapa de Angola  no ombro. “Se não ocupa o tempo, o que faz?” Ando à volta das árvores: a menina não imagina o que é andar em volta de um choupo alto num dia de ventania. Se tem folha, o vento emaranha-se nas nervuras, amansa a rebeldia no limbo, e daí se evola agradável sonoridade. Outra coisa é no Inverno, o vento tresmalha-se no labirinto dos ramos despidos: e dessa harpa primitiva irrompe um silvo, um uivo imenso de alcateia alada. “Mas isso parece-me criativa e económica forma de ocupar o tempo! Vou aconselhá-la a outros clientes. Vê as notícias na televisão? O pior, o pior passou: resgate limpo!” Eu fui à guerra, tatuei a guerra no corpo, se quiser… Ocupar o tempo é a pior das servidões. Conhece a imagem: carregar água com a peneira? Pois na minha maneira de ver, a ocupação do tempo se perfila no mesmo domínio do desumanamente intolerável.
O homem desde as escadas, para em frente do segurança. “A doutora gestora resolveu a sua situação laboral?”, salta  a pergunta de retórica. Ele é segurança, da geração da tatuagem despenalizada; aparta desempregados, como rês atordoada, pelo tempo de pousio. Escasso número de palavras usa na sua função. “Bom dia”, “segundo andar”, “tenha paciência”… E quem entra desiludido, vê as tatuagens floridas, preenche o formulário, regressa corcovado de desespanto – fragmento ínfimo de estatística manipulada. O homem diz, estamos em guerra e não sabemos ao certo quem é o inimigo. Os nossos medos tolhem-nos, a fome de deslumbramento, e a outra, resigna-nos. Andamos em guerra dentro de cada um e com toda a gente. Onde foi que o meu amigo fez esse cacho de tatuagens? Na outra guerra, as tatuagens eram diferentes, neo-realistas como os sonhos, como os receios. O meu amigo alguma vez ousou sonhar como os neo-realistas? “Não o entendo. Eu trabalho, vejo televisão: e adormeço”.
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O Medo Não Podia Ter Tudo
Augusto Baptista e Francisco Duarte Mangas 
edição da Associação dos Jornalistas
 e Homens de Letras do Porto, 2014
Col. Memória Perecível

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