terça-feira, 8 de novembro de 2011

Não fiques à espera

Um de Outubro.
O anarquista e a sueca
Em redor dos quatro jogadores mais algumas almas atentas ao jogo. Em silêncio, quem está de fora “racha lenha”. Cartas surrentas de tanto uso. Quem dá, humedece primeiro o polegar na língua para as fazer correr. São velhos ou homens precocemente ludibriados pelo tempo? Aquilo deve ser despique antigo, haverá mesmo desconfiança de renúncia (o pecado mais grave na sueca): os homens, os quatros velhos e a silenciosa assistência, concentram toda a atenção no tampo da mesa. Felizes. No extraordinário mundo das cartas, certas situações, o duque manda no rei. Jogar assim a palavra felicidade talvez soe a falso. Eu sei. A poucos metros, uma multidão imensa e ruidosa vai crescendo. É aqui um dos pontos de encontro da manifestação promovida pela CGTP-IN. As esquerdas aparentemente juntas, definem, em surdina, territórios no desfile. Os das cartas: unidos! Unidos na doce resignação, numa tarde de sol, no Jardim da Cordoaria. Há muito não via tanta gente em protesto a desaguar na Baixa do Porto. De repente, a imagem. A imagem que eu guardarei: um jovem anarquista agita a bandeira negra numa vara de sabugueiro.

Dois de Outubro.
Quem me ama
Vila do Conde, Anos Sessenta. Assim se designa a exposição, no Centro de Memória. Vi-a na semana passada. E o que fica da visita? Uma fotografia de Ruy Belo. O despojamento da pose, um sorriso com travo a melancolia. “Quem me ama, guarda as minhas palavras” - bíblica legenda que imaginei ao ler a foto.


Três de Outubro.
Fome veloz
A pequena romãzeira ocupa o mesmo chão de uma outra, enorme, a quem estranha praga roeu a raiz. Plantei-a no ano passado, ainda não se agarrou, ainda não sabe navegar na terra. Na altura na certa, recusou florir e eu, a fazer fé na sua tenra juventude, nada vi de anormal. Hoje, observo-a e espanto-me com o inesperado rubro de algumas flores. Desconcertante o tempo do nosso tempo. Os dióspiros amadureceram cedo, fintaram a fome veloz dos estorninhos.

Seis de Outubro.
Os nossos gatos
De casa até à estação do metro, gasto vinte minutos. A pé. Faço a caminhada muitas vezes. De manhã, neste Outubro quente, vi dois gatos mortos na Estada Nacional (uma parte do percurso), e um outro na estrada municipal, atravessa campos e um bosque. Quem os não ama, diz: os gatos têm sete vidas. Estes seriam felinos do desconcertante tempo do nosso tempo. De cio veloz como a fome das aves. E esse pensamento, essa duvidosa explicação, retira dureza à imagem de morte. Do atropelamento sem fuga.

Sete de Outubro.
Terra limpa.
Leituras atrasadas, algumas tidas como perdidas, postas em dia na viagem de metro até ao Porto. Mais na ida, pois é manhã: e a luz da manhã afigura-se a melhor de todas para afagar palavras desavindas. No regresso, não raro, encontro o Herculano Lapa, proprietário de uma das raras livrarias tradicionais que resistem na cidade. E, talvez, uma das livrarias como o nome mais lindo: é a Utopia. Nessas viagens, as leituras – as minhas e as dele – ficam adiadas. Mas é de livros, de livros aparentemente caídos na penumbra que falamos. Outras vezes, dos ciclos da terra, de sementes e frutos, que um boletim editado pela Colher para Semear-Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais espevita. Chama-se O Gorgulho, palavra adormecida desde os tempos da minha infância. Palavra amaldiçoada pelos pobres camponeses, sempre a medir a vida e todas as coisas pelos dedos da fome. Gorgulho, para quem não saiba, é (era) um insecto que atacava as sementes recolhidas nos espigueiros e nos celeiros. O boletim, que o homem da Utopia me deu a conhecer (custa um euro e meio, já saiu o número de Outubro) é o contrário do tal bichinho voraz do imaginário de subsistência. Surge em defesa das sementes tradicionais, da biodiversidade agrícola. No fundo, O Gorgulho é subtil metáfora da terra limpa. Mestre Marques Loureiro, o do remoto Horto das Virtudes, seria leitor atento e, provavelmente colaborador, da revista; Tomás Morus também a indicaria aos habitantes da sua imaginária ilha.

Quinze de Outubro.
Na rua te procuro.
O centro comercial, a minha ingenuidade imaginava vazio, fervilha. Será esta a classe média do “Portugal que pode deixar de existir”? Acompanho o meu filho na busca de um livro de História. Entramos na FNAC e, de súbito, um grupo de meninas surde aos gritos. De júbilo. E esses gritinhos enchem todo o espaço. Não há o livro. As rapariguinhas, no auditório da casa, em delírio (alguém me explicará mais tarde), viam um “DVD sobre a vida de Justin Bieber”. Dezenas de metros além, na montra de uma loja de electrodomésticos, vejo imagens em directo dos “indignados”, na Praça da Batalha. A rua. O vertiginoso regresso à rua em vários pontos do mundo. Algo está a mudar, algo vai mudar, no nosso desconcertante tempo. É dos indignados, diria agora Marcuse, que nós é permitida a esperança..

Dezassete de Outubro.
Pelo Maio
A frase na parede, a negro como a bandeira do jovem anarquista, parece ter sido escrita na noite anterior. Para (me) provocar. Creio tê-la visto antes, em território diferente da cidade. Mas (re)lida hoje atiça outro sentido. “Não fiques à espera da Revolução/ a olhar para a televisão”, eis a fisgada, a ressurgir a negro, como disse, em muro de casa devoluta, na Rua do Bonjardim. Belo nome de rua sem uma única árvore, sem um palmo de verdura. No regresso a casa, hoje, dá para ler. Ler devagar. A caminhada, já noite, rente ao bosque, campos, um riacho sujo, a seguir a horta da enorme glicínia domada a sebe. Pelo Maio debruça os seus cachos roxos na borda do caminho, longo abraço aromático. Nesses dias apetece ser eterno. Mas agora é Outubro. Depois da glicínia, na mesma borda existe um sabugueiro. Esta noite, como noutras vezes, faz-me parar: colho um raminho, guardo-o no bolso. Ritual antigo, que a minha avó me legou. A folha de sabugueiro (o jovem anarquista por certo desconhece), agachada no bolso, afasta o mau olhado.


Dezoito de Outubro.
A magnólia branca
Visita ao Farrapeiro de São Vicente de Paulo. Ao lado, no átrio do ACP, habita a magnólia branca, enorme, uma das mais bonitas da cidade do Porto. Mas Outubro não é a melhor altura para se falar de magnólias de folha caduca. Não paro, vou directo aos livros: à procura de palavras no meio da devastação de outras memórias materiais íntimas, como uma cama ou uma bengala, num exílio precário. Nestas coisas, enfim, também há o dia da caça e o dia do caçador. Encontro o Teatro Anatómico, de Mário Sacramento, uma primeira edição muito bonita da Atlântida Editora, 1959, na colecção Centauro. A obra, quatro peças em um acto, é dedicada a João Sarabando. Ao lado, com grafismo frugal, J. Stalin, Los Fundamentos del Leninismo, (terceira impressão) das Ediciones en Lenguas Extranjeras – Pekin 1972. Este detalhe convence-me.


Vinte e um de Outubro.
“A morte que talvez nos falte”
Na televisão, a dado momento, desvio o olhar. Insuportável aquela forma de ver morrer. Nas capas dos jornais, outra vez a imagem da vítima no momento da captura. Um rosto de silêncio ensanguentado (já havia excedido a expressão última do medo), troféu de caça, gira na horda em delírio – que as câmaras de tv também instigam. A impiedade não é o silêncio ensanguentado no devaneio da chusma possessa. A crueldade, na sua linha mais cínica e rude, irrompe numa outra imagem, feita por palavras: “Morreu como uma ratazana”. E aqui, perante metáfora tão brutal, nada acho para suavizar o desconforto de pertencer ao nosso desconcertante tempo. Talvez por graças do raminho de sabugueiro, afasta maus olhados enquanto seduz a sorte, entro num alfarrabista da Rua do Bonjardim (sem árvores, é verdade, mas não cessa de me surpreender) e, na banca dos livros a dois euros, se ilumina Guilherme, o Marechal. Espantosa, a escrita de Georges Duby. Na terceira página do livro, o historiador fala da morte, invisível e invencível espada, a cercar Guilherme, regente do reino de Inglaterra durante a juventude de Henrique III. E, de seguida, descreve “o ritual da morte à antiga, que não era fuga, saída furtiva, mas aproximação lenta, regulada, governada, e prelúdio, passagem solene de um estado para outro estado superior, transição tão pública quanto o eram as núpcias e tão majestosa como a entrada dos reis nas suas cidades. A morte que perdemos e que talvez nos falte”.

Vinte e cinco de Outubro.
Sonho de veadores.
O país “que pode deixar de existir”, bem vistas as coisas, deixou de existir faz tempo em diversas partes do seu território. Atravesso a serra de Fafe, o Outubro quente despede-se em copiosas bátegas. A freguesia de Guilhofrei, vizinha da freguesia onde nasci, vai deixar de existir. Nem a barragem do Ermal, no tempo da Ditadura, a conseguira engolir; tomba, agora, por decreto. “As gorduras do Estado” são, afinal, os “vencimentos” do regedor e respectivo cabo de ordem. Algures, em Guilhofrei, há os socalcos de Gandufe. Muitas vezes ouvi do meu pai a promessa: “Havemos de ir afuroar os socalcos de Gandufe!” Não fomos, é verdade. Mas tanto eu como o meu pai ainda guardamos esse sonho de veadores à moda antiga.

Publicado no JL

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